As virtudes teologais do capitalismo alemão

Começa nesta quinta-feira (8) a cúpula da União Europeia em Bruxelas. E a chanceler Ângela Merkel, Coração de Leão, está numa autêntica cruzada. A seu lado, fiéis cavaleiros (embora com […]

Começa nesta quinta-feira (8) a cúpula da União Europeia em Bruxelas. E a chanceler Ângela Merkel, Coração de Leão, está numa autêntica cruzada. A seu lado, fiéis cavaleiros (embora com algumas infidelidades): Nicolas Sarkozy (presidente francês, no papel de Rolando), José Manuel Barroso (presidente da Comissão Européia, no papel do Príncipe Valente), Herman van Rampuy (presidente do Conselho Europeu e da Zona do Euro, no papel de Ivanhoé) e Mario Draghi (diretor do Banco Central Europeu, no papel de Habacuc – aquele velhinho simpático do Incrível Exército de Brancaleone).

Na segunda linha, os escudeiros – Lucas Papademos e Mario Monti, fiéis guardiães dos princípios do Consenso Sagrado de Bruxelas. Um pouco mais afastado, no papel de Sir Lancelot da Ilha (na Távola Redonda, Lancelot do Lago era francês, mas aqui as coisas se invertem), o primeiro ministro britânico David Cameron.

Mais distante, na torcida, no papel de Sir Percival, o “sans tache et sans reproche” (“sem mácula e sem censura”), o presidente Barack Obama. Na Távola Redonda, esperando as determinações, o restante dos cavaleiros, feitos mais ao estilo Sancho Pança do que D. Quixote. Ah sim, no apoio, como Rainha Guinevere, Christine Lagarde, do FMI. Ao redor, nos poleiros do mercado fiananceiro, o coro dos abutres (aqui na Europa não há urubus), ou seja, a banca financeira internacional.

A cruzada tem por objetivo a tomada de corações e mentes pelas virtudes teologais do capitalismo alemão. As virtudes teologais são aquelas que Deus dá de graça ao vivente (Fé, Esperança e Caridade) ou que este deve aprender para conquistar o céu (Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança).

A conquista pelas virtudes do capitalismo alemão implica a Fé misturada com a Fortaleza na adoração pelo Trabalho pago a preço mínimo, e assim a Esperança se transmuda em Certeza da Recompensa graças à obtenção de menção honrosa no Círculo do Capitalismo Virtuoso.

Já a Caridade mistura-se com Justiça, implicando a indispensável Disciplina: Recompensa sim, mas apenas para os bem comportados. Para os demais vale a carocha (aquele chapéu em cone) dos condenados pelo Santo Ofício e o banquinho de castigo, virado para a parede.

A Prudência aplica-se no investimento social, fazendo dele o mínimo indispensável para que os países não sucumbam por inanição, e a Temperança se refere a aposentadorias, pensões, abonos de Natal, trabalhadores da função pública e outros itens que dilapidaram sem dó nem piedade os fundos públicos.

Com isso encena-se nesse altar o “Auto da Austeridade”, para catarticamente suscitar paz e calma nos mercados financeiros.

É uma tarefa inglória, pois os abutres que se acomodam no poleiro das finanças primam por tudo, menos pelas virtudes teologais. São descrentes em tudo que não seja o seu lucro, desconfiados de todos que não os favoreçam, desconhecem a caridade, em vez de prudentes são impudentes, adoram a injustiça porque assim os que ganham mais ganham mais ainda, são covardes ao extremo, fugindo da raia ao menor sinal de retração de suas sinecuras e por fim têm tanta temperança quanto pinto no lixão. Enfim…

De todo modo, a missa vai ser rezada. No altar, o euro. Vamos ver se ele sai reforçado ou pelo menos ileso. O capitalismo alemão e o Consenso de Bruxelas precisam desesperadamente disso. Sem o euro, não há nem consenso nem Bruxelas; os cavaleiros e os escudeiros ficarão pendurados nos pincéis. As exportações alemãs, que garantem a economia deste país e por tabela a coesão da União Europeia – e dentro dela a coesão da Zona da moeda única -, por mais balbúrdia que haja, iriam para o brejo sem o euro.

Diz-se que o fim do euro – ou sua restrição a alguns países – de imediato encareceria brutalmente a dívida externa dos outros, porque as moedas dos que saíssem ou ficassem fora seria desvalorizada. Mas aquela dívida permaneceria em euros – ou em dólares, ou em ienes. Sem falar nos yuans dos chineses e suas implacáveis reservas em letras do tesouro norte-americano. Só que no médio prazo a moeda alemã, fosse qual fosse, se valorizaria, empurrando as exportações para baixo, abrindo a porteira das importações ou então restringindo-as, o que provocaria inflação, alta de preços etc. Um desastre.

De quebra (a palavra é interessante) vários daqueles países – não só a Grécia – fariam “default”, ou seja, não pagariam pelo menos uma boa parte de suas dívidas, como a Grécia. O resultado disso é que o sistema bancário alemão iria não para o brejo, mas para o fundo do oceano, juntar-se ao francês que lá já estaria, abraçado ao britânico.

Em suma, por sobre aquele “Auto da Austeridade” acumulam-se as nuvens do Armagedon. Outro problema é que aquele “Auto” precisa de tempo para se cumprir. Se assumir a forma de uma renovação do Tratado Europeu, três anos, por baixo, entre votações e plebiscitos nacionais (do tipo cuja ameaça derrubou Yorgios Papandreou). E as nuvens são para o agora, e os abutres têm fome já.

Herman van Rampuy, no seu papel de angariar fundos políticos (como Ivanhoé, no filme e no romance, os financeiros) para ajudar Coração de Leão em sua empresa, imaginou uma saída, um atalho: no lugar de fazer um novo tratado, simplesmente desenhar um novo protocolo (um “puxadinho” ao atual tratado), um compromisso a ser assinado entre os países membros da U. E. ou pelo menos da Zona do Euro, afirmando um “compromisso em manter um orçamento equilibrado durante os ciclos econômicos”, com uma cláusula que implique “reduções automáticas de despesas, aumentos de impostos ou ambos”, caso necessário.

Isso implicaria de fato numa renúncia imediata às soberanias nacionais, colocando todos sob a tutela dos escudeiros de Bruxelas, e uma torrente de Montis e Papademoses tomaria as contas dos países sob tutela, exigindo os procedimentos “automáticos” ou distribuindo carochas punitivas.

De fato, esta é uma situação inusitada para a Europa. Vamos ver, até o fim de semana, o que vai surgir dessas cinzas do Velho Mundo. Talvez eu tenha de mudar o nome deste blog para Blog do Novo Mundo, ou do Mundo Submerso, conforme os resultados. Aguardemos, com Fé, Esperança e Caridade. A ninguém interessa uma Europa desagregada e desnorteada. Mas, na falta de imaginação generalizada, a situação está muito feia.