Zona do euro: o estado da confusão

Nicolas Sarkozy, Gordon Brown e Angela Merkel, à frente das principais forças europeias (Foto: Montagem Rede Brasil Atual) A gente falava “o estado da arte”, para dizer quando alguém ia […]

Nicolas Sarkozy, Gordon Brown e Angela Merkel, à frente das principais forças europeias (Foto: Montagem Rede Brasil Atual)

A gente falava “o estado da arte”, para dizer quando alguém ia explicar como as coisas estavam num certo campo do conhecimento.

Mas por aqui na Zona do Euro reina um estado difícil de descrever. É algo entre o estupor, a confusão e a euforia.

Euforia? Sim, euforia. Pode ser momentânea. Ninguém sabe ainda ao certo. Euforia onde? Nas bolsas, que subiram. Nos bancos europeus, cujas ações subiram nas bolsas.

O anunciado pacote de mais ou menos 750 bilhões de euros, ou 1 trilhão de dólares, ou 1,8 trilhão de reais, trouxe a nova de que potencialmente haverá mais dinheiro nas canaletas dos mercados. Isso deixa assanhado qualquer um que administre essas canaletas. Apesar de que isso não vai entrar de uma vez só, nem de imediato, nos mercados. Trata-se de um fundo de salvaguarda. Mas se as coisas continuarem como estão, é muito provável que essa soma toda, ou parte dela, termine entrando na quadrilha que ora se dança, para ajudar as quadrilhas que ora tocam a música.

Euros, dólares, reais? Sim, porque, apesar de modesta diante da magnitude dos números e da quantidade de zeros à direita, o Brasil também dá sua contribuição, através do FMI, para fazer relaxar a zona do euro: 224 milhões de euros (US$ 286, R$ 540 milhões). Quem diria, quem nos viu, quem nos vê. Antes de chapéu na mão, agora dando um teco de ajuda a quem está de cartola no pelourinho.

Euforia nas bolsas e mercados, estupor e clima de velório na Grécia, a “ajudada”. Mas apesar da cerração que ainda cobre essa história toda, algumas coisas vão se esclarecendo. Todos os analistas convencionais apontam seus furibundos dedos para o sistema de aposentadorias e pensões dos gregos como o vilão da história, que prostrou o governo e suas finanças. Mas não é bem assim. No mínimo, não é só isso. Informações circulantes (v. The Guardian, artigo de Helena Smith) dão conta de que o nível de sonegação na Grécia era estapafúrdio. Apesar de muitas dezenas de milhares de famílias viverem nababescamente nas periferias de Atenas, menos do que 15 mil contribuintes declaram ao IR ganhos acima de 100 mil euros por ano. O governo conservador que antecedeu o socialista atual comprometeu a capacidade de fiscalização do Estado. O novo governo tentou monitorar as mansões por satélite, para verificar quais tinham piscinas. Descobriu-se um verdadeiro sistema de camuflagem, que usa desde imitação de grama até lâminas finas de asfalto para disfarçar tais benfeitorias. Um show de sonegação fiscal e de informações. O total de sonegação chegou a 20 bilhões de euros.

No mesmo artigo lê-se que o “mercado informal” – contrabando, transferências fora de controle fiscal, evasão cambial etc. – antes chamado de “mercado negro” – alcança 30% do PIB da nação. Esses dados demonstram uma espantosa coincidência de números. Vejamos: o PIB grego é de 330 bilhões de dólares, ou seja, cerca de 254 bilhões de euros. Isso significa que o mercado “isento de fiscalização”, em parte por incúria pregressa do Estado, toca quase 77 bilhões de euros por ano. Os títulos do governo grego que vencem em 19 de maio, e que provocaram a correria das últimas semanas, somam de 8,5 a 9 bilhões de euros, segundo distintas fontes disponíveis na internet. Tomando-se 9 bilhões por base, isso significa 11% daqueles 77 bi circulando no “mercado refratário”, um percentual perfeitamente plausível de ser arrecadado, mesmo que não atingisse toda a massa circulante fora das quatro linhas.

Outra comparação interessante. O total de ajuda da União Européia e do FMI à Grécia está previsto para ser de 110 bilhões de euros em três anos, ao custo de pulverizar direitos trabalhistas e o poder aquisitivo da população, mergulhando o país numa recessão homérica. Segundo dados de artigo publicado no New York Times em 6/5/2010, por Petrer Boone e Simon Johnson (este último ex-economista chefe do FMI), essa recessão deve chegar a 30% do PIB. Voltamos a encontrar os 77 bilhões que circulam no “mercado livre das peias do Estado”. Se fatia substantiva desse “mercado de facto” entrasse na órbita do “de jure”, a recessão poderia ser cortada talvez pela metade; mas ao mesmo tempo a “austeridade” imposta pelo “auxílio” deve impor restrições à ação do Estado. Ou seja, o “mercado de imposto zero” vai aumentar, diminuindo a arrecadação e o poder de investimento do Estado. Segue desse raciocínio que 30% de recessão é ainda uma estimativa conservadora, pois, segundo Daniel Gros, citado no artigo como “um eminente economista de Bruxelas, a sede da EU, para cada 1% do PIB que o governo deixe de “gastar”, ou seja, investir, segue-se uma retração na demanda equivalente a 2,5% do mesmo PIB. A Grécia está na situação de que o remédio talvez a mate de uma vez por todas, numa espiral em direção ao Hades.

Ainda do artigo de Boone e Simon vem outra dado muito interessante. Dos prometidos 110 bilhões de euros, 80 % irão diretamente para as mãos dos bancos franceses, alemães e outros, credores do Estado grego. Quer dizer, a Grécia mesmo vai ver apenas 22 bilhões de euros – uma soma um pouquinho maior do que aqueles 20 bilhões sonegados pela incúria do governo anterior. Tivessem os governantes gregos agido a tempo, levantando parte dessa sonegação e integrando ao mercado sonante uma parte do “mercado dissonante”, a sua situação poderia não ser boa, mas seria melhor do que o estado terminal em que seu país se encontra.

Para completar esse estado confuso, cheio de zeros que deixam tonto os leitores e a mim, algumas observações:

  1. Fala-se em vários artigos que as duas ajudas – a 110 bi para os gregos e a de 750 bi para salvaguardar o mercado da zona do euro – foram o resultado de uma aproximação e queda de braço entre a chanceler Ângela Merkel da Alemanha e o presidente francês Nicolas Sarkozy. Merkel, ameaçada por uma eleição na importante província de Renânia do Norte – Vestfália e uma crescente insatisfação de dois gumes, seja pela ajuda aos gregos, seja pela demora em agir para salvar o euro, teria ganho o primeiro round, impondo as condições duríssimas que a Grécia vai enfrentar. Sarkozy, em contrapartida, teria ganho o segundo. Partidário de uma ação mais abrangente do Estado, ele teria imposto o tamanho da coisa, aumentando a já sólida tripa de zeros no fim das cifras ou aumentando o algarismo da frente, não se sabe muito bem.
  2. De todo modo, uma coisa ficou clara: o FMI foi chamado à liça, ou aceito no campo de jogo, tanto por necessidades financeiras quanto políticas. Nesse último caso, sua função é de ser o Cérbero, o cão de guarda na entrada do inferno (Hades) onde agora estão os gregos, e onde já estivemos nós, os argentinos, os mexicanos e tantos outros (também estão nesse Hades os romenos, na EU, embora não usem o euro como moeda). Seu papel é impor suas tradicionais condições duríssimas aos estados que lhes caem nas mãos e sua política de recessão continuada.
  3. Para completar esse quadro cheio de tormentas e confusão, duas eleições complicaram a situação política da Alemanha (a já mencionada na Renânia do Norte – Vestfália) e na Inglaterra (por aqui se diz Reino Unido). Em ambas nenhum partido pode proclamar-se “o” vencedor; houve apenas perdedores insofismáveis. Na RNV alemã, o partido e a coligação da Democracia Cristã de Merkel com o FDP de Guido Westerwelle, ministro de Relações Exteriores; na Inglaterra, o líder do Partido Trabalhista, Gordon Brown. No momento em que escrevo estas mal traçadas, ainda não se sabe que tipos de coligação vão emergir dessas débâcles. Quando a cena ficar mais clara, se é que vai ficar, também escreverei sobre isso, pois esses resultados também estão ligados a essa profunda crise financeira, a primeira que a União Européia está enfrentando.

Até aqui, apesar de alguns percalços, ela voava em céu de brigadeiro e era citada como exemplo para o mundo. Agora, há mais cinzas no ar do que apenas as do vulcão islandês.