Usain Bolt: o fantasma de Jesse Owens

Em meio às festas embandeiradas destes jogos atléticos, nunca é demais rememorar o fantasma de Jesse Owens, e do mundo cujas bases e molduras racistas ele conseguiu estremecer

(Montagem sobre foto de Usain Bolt feita por Kai Pfaffenbach/Reuters e de Jesse Owens, de domínio público e sem informação de autoria)

Penso que foi o jornal inglês The Daily Mirror, em sua página on-line www.mirror.co.uk, o primeiro a fazer a comparação entre o recordista mundial dos 100m. rasos, o jamaicano Usain Bolt, e o atleta olímpico norte-americano Jesse Owens.

Bolt venceu os 100m no domingo passado, 16 de agosto, com a marca qualificada como “estratosférica” por muitos jornais de 9s58″, no primeiro dia para valer do Campeonato Mundial de Atletismo que se disputa agora em Berlim, na Alemanha. Owens, nos jogos olímpicos de 1936, também em Berlim, foi o primeiro atleta aganhar 4 medalhas na mesma competição: 100 e 200m rasos, salto em distância, e no revezamento 4x100m.

Ambos eram negros: esse foi o ponto de partida da aproximação. Mas na verdade há enormes diferenças entre eles. Bolt é o exemplo dos atletas de última geração do século XXI. Talento precoce, foi descoberto e embalado por um complexo sistema de preparação de corredores desde cedo. Algo contra? Nada. Mas vejamos alguns dados sobre Owens.

Owens nasceu no Alabama, no sul dos Estados Unidos. Foi para Ohio, onde teve de trabalhar para manter seus estudos. Fez carreira como atleta sem uma única bolsa de estudos. Enquanto estudava e quebrava records nas pistas de corrida, Owens tinha que dormir fora do campus do Ohio State University porque era negro. Quando viajava com a equipe de atletas de sua universidade, tinha de dormir em hotéis e comer em retaurantes “só para negros”. Excepcionalmente, quando veio para Berlim, em 1936, foi-lhe permitido ficar no mesmo hotel dos demais competidores.

Os jogos olímpicos de 1936 foram planejados, na Alemanha, para glorificar o III Reich e a supremacia racial ariana, projetada por Adolf Hitler, seu livro Minha Luta e a vitória dos nazistas em 1933, com a instalaçào em seguida de uma ditadura totalitária. De fato, a os atletas alemães obtiveram vitórias expressivas naquele ano; mas nada igualou o feito de Owens, o que deixou o chanceler Hitler muito desgostoso, a ponto de ele pensar que atletas de “raças inferiores e primitivas”, melhor equipados fisicamente do que os brancos “por natureza”, deveriam ser proibidos de participar de tais jogos. Esse seria o destino do mundo, tivessem os nazistas ganhado a Segunda Guerra Mundial.

Mesmo vitorioso, o destino de Owens não foi fácil. Segundo sua biografia na Wikipédia, ele foi excluído da lista de atletas amadores dos Estados Unidos por ter preferido fazer campanhas publicitárias a acompanhar sua equipe à Suécia para uma nova competição. E consta que, para poder ir à festa em sua homenagem no Hotel Waldorf Astoria, em Nova York, ele teve de usar o elevador de serviço, porque era negro. (Discriminação que, por baixo do pano, também existia no Brasil, em relação a negros, empregadas domésticas e demais “seres da baixa sociedade”, e que felizmente hoje não existe mais).

Assim como o mundo de Bolt é muito diverso do de Owens, a Berlim de hoje também o é em relação a de 1936. Multicultural, multicolorida, multi-tudo, a Berlim de hoje é freqüentemente equiparada a um espaço de permanente confraternização, embora ainda subsistam, como em todos os lugares do mundo, não só reminiscências de discriminações anteriores, como também quem queira revivê-las, como os movimentos neonazistas.

Por isso, em meio às festas embandeiradas destes jogos atléticos, que atraíram quase 2 mil atletas do mundo inteiro, 3.500 jornalistas, e cuja previsão de 50 mil espectadores por dia já foi ultrapassada, nunca é demais rememorar o fantasma de Jesse Owens, e do mundo cujas bases e molduras racistas ele conseguiu estremecer. 

Leia também

Últimas notícias