Vida e saberes

Coronavírus, conexões sociais e lideranças: os idosos não são apenas bons avós

Cada idoso em posição de liderança é um “hub” gigantesco ligando gerações distintas, locais distintos, áreas de atuação distintas

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Se ignorarmos as recomendações de isolamento social, aí teremos uma catástrofe de liderança, pois ao mesmo tempo estaremos perdendo incontáveis conexões sociais importantes nos negócios, na política, na sociedade civil, nas artes e nas comunidades étnicas e religiosas

Publicado no site da Unesp Desde a campanha eleitoral, o atual Presidente da República deixou claro que seu governo seria baseado na exclusão ativa e deliberada de certos grupos sociais. Pareceu a alguns distraídos que se tratava apenas de uma reação às enormes conquistas que negros, homossexuais e mulheres haviam obtido nas últimas décadas, e não um projeto mais profundo, baseado no ódio, assemelhado aos projetos totalitários do século XX. Viram nas passeatas de mulheres de 2018, com jovens vestidas de modo exuberante, um bando de histéricas que mereciam levar uma lição nas urnas, surdos para o claro alerta de que os direitos estava em jogo.

Mas e os velhinhos? Como é que saímos do desprezo aos negros, às mulheres, aos homossexuais, e mesmo aos indígenas a quem nossa ideologia nacionalista deu destaque, para chegar nesse profundo descaso com a vida dos idosos? Chegamos pois foi daí, do desprezo à vida, da tortura e do terrorismo, que partimos. E, como o debate se dá em torno da vida, é natural que muitos no debate público tenham se lançado à defesa da vida dos idosos como valor em si, e também como patrimônio das famílias, que se dedicam emocional e financeiramente ao bem estar de seus progenitores. Só que os velhinhos não são apenas bons avós. É disso que quero falar.

Hoje, com a expectativa de vida se alargando, muitos idosos mantêm vida ativa muito além dos 60 anos, que é quando o risco de vida começa a subir significativamente para a doença causada pelo coronavírus, e às vezes além dos 70 ou 80 anos. Essa atividade pode se dar na continuidade de seu trabalho, gerando renda e às vezes auxiliando os membros mais jovens da família. Pode ser em serviços diretos a esses membros, como cuidar dos mais jovens ou da casa. Essa é uma ajuda significativa, que não deve ser menosprezada. Além disso, muitos idosos ativos, por terem maior experiência de vida, são também referência moral em suas famílias e comunidades, servindo de fonte de conhecimento e norte em momentos de precisão. Vamos lembrar que, como espécie, começamos a evoluir de verdade quando a expectativa de vida subiu até o ponto em que os avós puderam ajudar na criação do netos. A perda dos idosos é uma perda social e econômica palpável, além da inegável perda emocional e familiar.

Mas há, entre estes ativos idosos, que contribuem com seu trabalho, auxílio e ensinamentos, outros idosos muito bem sucedidos em suas atividades, seja artísticas, científicas, nos negócios, na política e na sociedade civil. Os ícones jovens dos anos 1960, os empresários da tecnologia como Steve Jobs e Bill Gates nos anos 1980, e as startups dos anos 2000 podem nos ter dado a impressão de que os jovens lideram a sociedade contemporânea. Mas olhe à volta. Tivemos, no mesmo dia, a morte de dois maestros importantes em São Paulo, o Maestro Martinho Lutero e a Maestrina Naomi Munakata. Cada morte é uma perda, mas duas no mesmo dia dará aos músicos paulistas a sensação de desamparo que os órfãos têm, pois a situação é de orfandade mesmo. Pela sua experiência, e também pela sua trajetória, os dois maestros eram elos que ligavam antigos alunos com jovens iniciantes, musicistas internacionais e locais, o mundo da música e o público. Ao longo de sua trajetória profissional, foram forjando relações de tal modo que se tornaram “hubs” de relações no mundo da música e da arte.

Pense nisso para cada área de atuação. Imagine, na universidade, reitores e pesquisadores longevos, com muitos orientandos. Nos negócios, empresários com contatos internacionais e com o mundo das ciências e dos governos. Nas artes, diretores de teatro e cinema e atores consagrados. Na política, as vozes mais experientes do dia-a-dia de negociações, que são consultados pelos novatos, e podem até já ter ouvido falar de Kissinger. Na medicina, os diretores de hospitais e médicos experientes que conhecem muitos médicos, que foram seus alunos e assistentes, em torno de quem a informação circula e novas pesquisas se desenham. Esse grupo humano não é apenas um grupo que prestou bons serviços à nação e merece respeito, ainda que só isso já bastaria. Também não é apenas um grupo que tem uma experiência acumulada substantiva que não deve ser perdida de um momento para outro.

Cada idoso em posição de liderança é um “hub” gigantesco ligando gerações distintas, locais distintos, áreas de atuação distintas. O sumiço de um desses “hubs” é uma dor, que as pessoas e instituições conseguem lidar através de seus lutos e normas de sucessão, pois é, afinal de contas, a ordem natural da vida: os idosos alguma hora se vão. O sumiço de vários desses hubs, o que sem dúvida vai acontecer durante a epidemia de coronavírus, será traumático, pois as pessoas e instituições terão que se adaptar a perdas sucessivas e refazer os múltiplos laços que anteriormente passavam por esses líderes. Agora, se ignorarmos as recomendações de isolamento social, aí teremos uma catástrofe de liderança, pois ao mesmo tempo estaremos perdendo incontáveis conexões sociais importantes nos negócios, na política, na sociedade civil, nas artes e nas comunidades étnicas e religiosas. Teremos uma crise política no sentido mais profundo do termo: uma crise de liderança, por absoluta falta física dos “velhinhos” que dirigem nossos hospitais, universidades, templos, empresas, partidos e demais instituições essenciais para a vida humana.

Não temos como saber se a mortandade de líderes é algo desejado pelo atual líder do executivo, ou se é apenas consequência de sua política geral nefasta. Mas temos como saber que país queremos que emirja da pandemia. Podemos ter uma nação em choque por perdas sucessivas, desarticulada e incapaz. Ou então um país em luto, mas certo de que fez o melhor que podia, que salvou o máximo de pessoas, idosos e jovens, e que ainda conta com capacidade para agir. Com seus velhinhos.

*Heloísa Pait é professora de sociologia da Unesp no câmpus de Marília, onde pesquisa o papel dos meios de comunicação na construção da esfera pública; texto publicado originalmente na Revista Pasmas