Encarceramento

Mulheres trans no ‘Fantástico’: a prisão não é o ‘show da vida’

A violência do Estado é das mais perversas, pois dificilmente é percebida pela sociedade. E a matéria do programa dominical da Globo ajudou a esconder essa violência

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São com histórias assim que a prisão vem se sustentando como instrumento punitivo, a velha e cansada história da ressocialização, sempre contada de diversas formas diferentes

Jornal GGN – A violência do Estado é uma das mais perversas, pois dificilmente percebida pela sociedade, se faz silenciosa, de forma mecânica, camuflada por instrumentos e instituições legitimadas de maneira altamente suspeita. A matéria do Fantástico sobre mulheres trans ajudou a esconder essa violência.

Um desserviço para a vida de milhares de mulheres trans que sofrem violência, falta de assistência e risco de morte nas prisões, essa instituição centenária. Aliás, a prisão tem por volta de 300 anos e sempre foi isso, uma casa de morte, de crime e de abandono, não sendo por acaso que o problema de superlotação se agravou após o fim da escravidão legal.

Mas é sobre a matéria do Fantástico que se quer falar. Ela começa dizendo sobre a violência que as mulheres trans sofrem quando entram na prisão, para depois dizer que, com o tempo, são bem tratadas, ganham dignidade na prisão. E são com histórias assim que a prisão vem se sustentando como instrumento punitivo, a velha e cansada história da ressocialização, sempre contada de diversas formas diferentes.

Primeiramente, é bom que se diga que toda a matéria mostra uma situação inconstitucional, são mulheres em prisões de homens, e a Constituição estabelece que as penas serão cumpridas em estabelecimentos distintos, de acordo com o sexo (art. 5º, XLVIII).

Em segundo lugar, a maioria das mulheres trans não tem trabalho, não tem assistência, a elas é negado o hormônio de que necessitam – e têm direito se consideradas as suas condições de gênero – e passam todo o tempo de encarceramento correndo risco de morte. Certo, há as que conseguem arrumar parceiros na prisão, mas a maioria os aceita não de forma voluntária ou espontânea, mas como forma de proteção, isso quando não são escravizadas pelo xerife de ocasião.

O pior da matéria, entretanto, é mostrar a prisão como local de inclusão, como se na prisão a mulher trans estivesse melhor do que na sociedade. Ora, a prisão é o espelho piorado, a pior face de cada sociedade, o abandono e o preconceito que há do lado de fora é, na verdade, agravado na prisão. A matéria para além de esconder essa realidade, a nega.

Nenhuma daquelas mulheres queria estar ali presa, mas a matéria não fala. Quando a personagem Lolla, no fim, recebe a liberdade, ela fica feliz, mas passa despercebido para o telespectador o fato de ela estar ganhando o “regime aberto”. Muito estranho uma pessoa estar saindo do regime fechado para o regime aberto. A matéria não fala, mais uma suposta ilegalidade que passa como natural para a sociedade.

Nos dias em que estamos vivendo, em que garantir direitos está cada vez mais difícil, a matéria foi sim um desserviço para essas mulheres. Imaginemos um juiz que pense em garantir o direito à reposição hormonal dessas mulheres, logo aparecerão os que assistiram a matéria e não viram nada demais em uma mulher trans ficar sem reposição hormonal. Sobrará para o juiz. Que ela, mulher trans, cumpra sua pena sem esse direito.

Imaginem mais, imaginem um juiz que resolva soltar, sim, soltar, uma mulher trans que esteja correndo risco de vida, que esteja sem tratamento médico adequado. Ninguém vai entender essa decisão, afinal o que a matéria mostrou é que tudo pode se resolver na prisão. Afinal, sequer foram mostrados os ratos e as baratas que circulam por lá. Se a TV transmitisse cheiro, metade daquele romantismo iria por água abaixo.

Lolla, a personagem presa do fim da matéria, só por ser branca já se vê que a matéria trata exceção como regra, em um sistema prisional massivamente constituído por negros. Ela foi presa por assalto, a matéria diz, acrescentando que a maioria está lá por esse crime, mas esquece de dizer também que muitas estão lá de forma injusta.

Em um caso que lembro por ter me marcado especialmente, uma mulher trans foi presa por assalto, acusada de ter roubado o relógio de um homem. Só que depois se descobriu que ele era cliente dessa mulher, deixou o relógio com ela porque não tinha dinheiro para pagar, mas voltou com a polícia e a acusou de assalto. A voz dessas mulheres, como depoimento, tem valido muito pouco.

E mais, todos que conhecem prisão sabem a maquiagem que a administração penitenciária faz quando a prisão vai receber uma visita. O visitante dificilmente vê metade da violência presente naquele lugar. E não poderia ser diferente se esse visitante fosse um médico global, chegando cheio de câmeras, flashs e assistentes, para gravar um documentário da própria Globo.

Eu posso estar pessimista demais. Sim, meus mais de vinte anos trabalhando com prisão podem ter me deixado pessimista, mas é justamente o otimismo que a matéria passa para as pessoas que preocupa. Porque há uma grande distância entre pessimismo e otimismo, entre os dois há a realidade, e a realidade foi justamente o que a matéria não mostrou.