Uns mais iguais que os outros

Temer sincero confirma: golpes na democracia servem a projeto sem voto

Em entrevista à BBC, ex-presidente diz que Jair Bolsonaro vai bem porque está dando sequência àquilo que seu governo começou a fazer

Wilson Dias/Agência Brasil
Wilson Dias/Agência Brasil
Ex-presidente Temer costuma dizer que Jair Bolsonaro dá continuidade ao seu governo: azar do Brasil

Uma entrevista concedida pelo ex-presidente Michel Temer à BBC ilustra bem o atual momento histórico do Brasil sob diversos aspectos. Principalmente, por mostrar a real prioridade que impulsionou parte da classe política e da elite econômica brasileira: o desmonte do Estado em benefício do sistema financeiro de outras forças econômicas daqui e de alhures. Nesse sentido, o ex-mandatário tem toda razão quando aponta o governo Bolsonaro como uma continuidade do seu, mas subestima a atual gestão. Na prática, a equipe comandada por Paulo Guedes tem uma receita ainda mais radical do que aquela posta em prática a partir de abril de 2016.

Se o projeto de inspiração neoliberal de Temer não passou pelo crivo das urnas, tendo sido posto em prática após um golpe parlamentar, Bolsonaro foi eleito. Mas não é correto dizer que brasileiros votaram em um projeto. As eleições de 2018 foram anômalas de diferentes formas, a começar pelo impedimento do favorito, de acordo com todas as pesquisas, figurar como opção para o eleitor. O atual presidente compareceu a apenas um debate e não detalhou suas propostas na área econômica, formulações que ficaram restritas a uma pequena parcela do eleitorado. Imersos em fake news anabolizadas por esquemas de disparos em massa no WhatsApp, os cidadãos assistiram ao predomínio de temas morais a encobrir um ideário entreguista.

O símbolo dessa postura é a chamada reforma da Previdência. Temer se orgulha de ter pautado no Parlamento a discussão sobre o mais severo ataque ao sistema de seguridade social do país desde a Constituição de 1988. “A Previdência Social só foi aprovada agora porque na verdade, durante dois anos, eu fiz um debate intensíssimo sobre a Previdência Social e agora acabou sendo aprovada em primeiro turno. Suponho que será aprovada em segundo turno, é importante, fundamental para o país. No passado houve muita resistência, mas esta resistência foi vencida pela campanha que nós fizemos ao longo do tempo”, aponta.

Temer tentou aprovar sua PEC, mas o tempo e os escândalos foram cruéis para suas pretensões. Gastando energia e recursos públicos para convencer parlamentares a não aceitarem duas denúncias movidas contra si pela Procuradoria-Geral da República, o então presidente não conseguiu entregar o prometido ao mercado. A alegada reforma só passou em primeiro turno na Câmara no governo seguinte, após alterações no texto original – que cumpria a façanha de ser pior do que o antecessor –, um maciço apoio midiático e a velha estratégia de liberação de verbas por parte do Executivo (mais continuidade), além de uma tática de sufocamento dos movimentos sindicais e populares que faziam oposição às mudanças.

Estado em decomposição

Mas a Previdência não é o único orgulho do ex-presidente. “Agora, o meu (governo) teve esse mérito de colocar a Previdência, como de colocar outras reformas. Reformas fundamentais para o país, como a reforma trabalhista, a reforma do Ensino Médio, a recuperação das estatais…”

O apanhado feito por Temer facilita a identificação dos sinais de continuidade entre antigos e novos ocupantes do Planalto. A Operação Pente Fino no INSS, que já pelo nome busca transparecer aquilo que não é, foi implantada no governo de Michel Temer e se transformou em lei na gestão Bolsonaro. Médicos ganham bônus para fazer exames de reavaliação pericial e, desde o início da operação até março deste ano, foram canceladas 470.828 aposentadorias decorrentes de invalidez, afetando principalmente trabalhadores de baixa renda. Do total, 30,7% foram benefícios à Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), destinados a pessoas com deficiência permanente e cuja renda per capita familiar está abaixo de um quarto do salário mínimo.

Os ataques à legislação trabalhista também seguiram. Se durante o governo anterior foi aprovada e implantada a “reforma” trabalhista (note-se nesta aprovação o mérito atribuído por Temer ao presidente da Câmara Rodrigo Maia, também símbolo da continuidade),  a atual gestão continuou no ataque. A MP 881, da chamada “liberdade econômica”, altera diversos dispositivos da CLT liberando, por exemplo, o trabalho aos domingos e feriados para todas as categorias, sem que seja necessária negociação com sindicatos ou acordo coletivo.

E o sinal mais evidente da identificação entre os dois governos é uma motivação sempre invocada que é tão benevolente quanto irreal. Todas as retiradas de direitos são movidas pela nobre intenção de “criar empregos”. O ministro da Fazenda de Temer, Henrique Meirelles, garantiu que a reforma trabalhista resultaria em 6 milhões de empregos. Agora, prometem 8 milhões de postos de trabalho, com o desmonte previdenciário, até 2023. Já a MP da liberdade econômica seria responsável por outros 3,7 milhões de empregos entre 10 e 15 anos. Somando tudo o que foi prometido, o Brasil não só resolveria o problema do desemprego como poderia exportar vagas para países vizinhos.

Isso sem contar com a PEC do Teto de gastos públicos, que, segundo o governo anterior, faria o Brasil voltar “a crescer e a gerar emprego e renda”. “Com ela, o governo vai tirar menos recursos da sociedade para se financiar, ou seja, vai sobrar mais para as demandas do País”, dizia um texto explicativo no portal governamental. Não funcionou.

Voltando à entrevista do ex-presidente, sua empolgação só parece desaparecer quando se refere aos governos petista. “Eu digo com toda a franqueza, o governo Lula fez, digamos assim, que os mais pobres, que eram praticamente invisíveis, se tornassem visíveis – por meio do Bolsa Família, depois, com a presidente Dilma, com o Minha Casa Minha Vida. Que na verdade, são meros cumprimentos do que estabelece a Constituição Federal.”

Temer, quando fala do social, muda o tom, deixando de lado toda exaltação relacionada a temas como reforma da Previdência. Iniciativas na área são “meros cumprimentos” do que está escrito na Constituição Federal. À parte o fato de que cumprir a Carta Constitucional hoje, como diz o jurista Lênio Streck, seja quase um ato revolucionário, a quase indiferença do ex-presidente em relação ao social combina com seu sucessor, que não citou sequer uma vez a palavra “desigualdade” no discurso de posse como presidente de um país que terminou o ano de 2018 como o 9º mais desigual do mundo. As aparências não enganam.

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