Máquina de doido

Paulo Henrique Amorim, a televisão brasileira e suas mortes. Por Lalo Leal

A decadência do telejornalismo e da televisão é um drama ao qual se soma a triste despedida de PHA, um dos poucos profissionais que ainda dava a ela uma certa dignidade   

Por Latuff/247
Por Latuff/247

“A televisão é uma máquina de fazer doidos”, dizia Sérgio Porto, o inesquecível Stanislaw Ponte Preta, lá pelos anos 60 do século passado. Autor do Febeapá, o Festival de Besteiras que Assola o País, Stanislaw cutucava com o seu humor a ditadura da época e percebia na TV um instrumento que, ao contribuir para a burrice e alienação, dava ampla sustentação ao arbítrio.

Morto precocemente, Stanislaw não viu o crescimento da máquina fazendo e promovendo doidos, não apenas no público, mas dentro de sua própria engrenagem. Entregues como concessões pelos sucessivos governos federais a aventureiros, como Silvio Santos, ou a políticos travestidos de empresários, como Roberto Marinho, a TV foi se aviltando até chegar no lodaçal em que se encontra atualmente.

Nele acham-se figuras menores, mas não menos danosas, como os concessionários da Rede TV!, especialista em vulgaridades. Ou de um autoproclamado bispo, fazendo da fé mercadoria. Pretensos milagres num canal, detalhes da vida íntima de pretendentes à fama em outro, entrevistas chapa-branca com políticos de extrema-direita, censura de informações relevantes, defesa de medidas antipopulares vão se sucedendo a cada toque no controle remoto. Esse é o quadro atual.

São quase 70 anos de decadência. Exceções existiram mas não sobreviveram. Aqueles que viram na TV a possibilidade de expandir conhecimento e sensibilidade sucumbiram. Nada sobrou, na dramaturgia, dos teatros de Comédia ou de Vanguarda da pioneira TV Tupi. Nem do bom momento das novelas escritas por autores como Dias Gomes ou Lauro César Muniz, entre outros. Os grandes musicais da extinta TV Excelsior são uma lembrança que dói diante do que se vê hoje por aí.

No jornalismo a situação ganha contornos de tragédia. “Toda unanimidade é burra”, dizia Nelson Rodrigues, cada vez mais citado nestes tristes tempos. Se dermos razão a ele, mesmo lembrando o seu conservadorismo, o telejornalismo brasileiro é burro. Para as emissoras das Organizações Globo, TV Globo e GloboNews, a verdade é uma só. A defesa incondicional que fazem da destruição da Previdência pública é o exemplo mais atual e mais bem-acabado dessa burrice. Para não falar da vergonhosa censura imposta ao noticiário produzido pelo The Intercept Brasil, revelador, por meio da “série” #VazaJato, dos crimes cometidos pelos integrantes da operação policial, jurídica e midiática denominada Lava Jato.

Diante desse quadro sufocante, capaz de organizar amplas camadas da população segundo seus interesses, poucas vozes críticas conseguem ser ouvidas. No interior da máquina muitos tentaram, poucos conseguiram resistir. A inteligência crítica não combina com a informação na TV.

Voltando aos exemplos históricos, a referência jornalística é o Jornal de Vanguarda, da extinta TV Excelsior, criado e dirigido por Fernando Barbosa Lima. Bem feito, bem humorado e sério ao mesmo tempo, não deixou resquícios, só saudade para quem o conheceu. Como Barbosa Lima, outros profissionais ainda tentaram trazer conteúdo de qualidade ao telejornalismo. Um deles acaba de nos deixar e serve como exemplo da incompatibilidade perversa criada ao longo do tempo entre inteligência e televisão: Paulo Henrique Amorim.

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O jornalista carioca trouxe para a TV um conhecimento acumulado na academia e nas redações de jornais e revistas, sabendo-se que nem sempre foi fácil a adaptação à televisão dos profissionais formados nos meios impressos. Muitos sucumbiram. A busca da informação, a apuração precisa e o texto elegante, suficientes para o papel, exigiam na TV a aproximação com arte de interpretar. Poucos transpuseram essa barreira. Paulo Henrique Amorim, PHA, como se identificava, foi um deles.

Mostrou isso nas emissoras por onde passou, mas a decadência do telejornalismo brasileiro não combinava com a sua competência. Seu derradeiro empregador, a Record do bispo, empenhada em adular o atual governo de extrema-direita, e pressionada por ele, o tirou do ar pouco antes de sua morte.

Há nesse drama um simbolismo que, por certo, marcará a atual etapa da história da televisão brasileira. Sua decadência, a partir de agora, não se reduz apenas à mediocridade do conteúdo exibido. Marca também o desaparecimento físico de um dos poucos profissionais que ainda dava a ela uma certa dignidade.

 

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