carta de berlim #14

Brasil, Itália, União Europeia: vocês querem a democracia para quê?

Conte tomou posse na última sexta (1º) como primeiro-ministro de governo anti-establishment na Itália

CC/GOVERNO.IT

Conte, o novo premier da Itália: eEstá dado o labiríntico imbróglio da democracia europeia, que vai perdendo cada vez mais seu emblema ‘social’

A democracia submergiu numa crise sem precedentes no Brasil, ninguém de bom senso duvida disto. Talvez possa afundar ainda mais, mas já está na UTI das profundezas. E quando digo “sem precedentes” não quero dizer que não tenhamos vivido e sobrevivido a coisas tão ou até mais graves do que as que hoje estamos vivendo. Quero dizer que nunca houve esta situação, de um golpe civil, sem participação dos militares, cuja vanguarda é composta de setores do Judiciário, arautos na mídia, setores policiais, os perdidos dentro do Palácio do Planalto e mais alguns congressistas e cujo resultado é uma das maiores badernas e anomias já instaladas no país. Os coxinhas sangram: Parente teve de sustar de momento o aumento do diesel? Pois tomem lá um aumento da gasolina! Li outro dia: “[email protected], não têm gasolina? Encham o tanque com Moet-Chandon”.

Mas há outras democracias em questão. A crise italiana é evidência de uma delas. E que diz respeito não apenas à Itália, e sim a toda a União Europeia.

Na última eleição formou-se uma maioria ad hoc com o movimento “anti-establishment” M5 (de Cinco Estrelas) e a Lega (que estrategicamente tirou o “Nord” do nome). A pedido do presidente Sergio Mattarella, os dois líderes respectivos, Luigi di Maio e Matteo Salvini, encarregaram o obscuro (politicamente) Giuseppe Conte de formar um governo.

Ele o fez, e entregou a lista de ministeriáveis ao presidente. Surpreendendo a todos, este recusou o nome do proposto ministro das Finanças, Paolo Savona, de 81 anos, por ser este um conhecido eurocético, isto é, visto como inimigo tanto do euro como da União Europeia. Resultado: Conte demitiu-se antes de assumir o governo, situação também inusitada e confusa, a de um governo que caiu antes de assumir.

As reações foram as mais desencontradas possíveis. As bolsas, oscilaram, o euro caiu, alguns apoiaram Mattarella, outros criticaram. A reação mais contundente – logo contundida, pois seu autor pediu desculpas – veio do representante alemão do Comitê do Orçamento da União, Günther Oettinger, que disse ser aquilo uma lição para os italianos sobre “não votarem em populistas, seja à direita ou à esquerda”.

Nota Bene: no jargão da hegemonia neoliberal da União e da mídia mainstream do continente, “populista” é tudo que se afaste dela. E o novo governo propunha, além de uma repressão sobre imigrantes, medidas heréticas, como a conjunção de uma redução drástica de impostos com um aumento nas aposentadorias, por exemplo. Houve reações àquela reação: Donald Tusk, o presidente do Conselho Europeu, pediu respeito ao eleitorado italiano. Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, também defendeu a democracia eleitoral, dizendo ser ela um valor de todo o continente.

No Parlamento Europeu as reações de dividiram: os blocos conservadores e da social-democracia/socialistas apoiaram o presidente italiano. O bloco dos Verdes criticou-o, em nome do respeito à democracia eleitoral, embora manifestasse desacordo com o programa do M5 e da Lega. Na mídia mainstream ninguém se preocupou em ouvir o bloco de esquerda, como de costume, o que também evidencia características deste menu de democracia que aqui impera.

Na quinta (31), anunciou-se que o presidente italiano daria mais tempo à coligação para formar um governo. O seu recuo pode ser interpretado como uma reação diante de um impasse que se criou. No vácuo da “demissão” de Conte, ele teria de convocar novas eleições para o segundo semestre, no “outono”, como se diz aqui, ou seja, a partir do final de setembro. Até lá, assumiria (como já houve antes) um governo dos sonhos dos tecno-burocratas de todos os quadrantes: o primeiro-ministro seria um ex-dirigente do FMI, Carlo Cottarelli, que nomearia um ministério “técnico” e não “político”.

Porém esse governo teria de ser aprovado no Parlamento, onde, em conjunto, M5 e Lega têm maioria. Derrotado o novo governo, também antes de assumir, o Parlamento chamaria eleições antecipadas para julho. Luzes amarelas (vermelhas, jamais) se acenderam um Bruxelas, sede executiva da União Europeia, em Estrasburgo, que divide com a capital belga ser a sede do Parlamento Europeu, e em Frankfurt-am-Main, sede do Banco Central Europeu e do Banco Central Alemão, seu vizinho: uma eleição em julho poderia aumentar o poder de fogo da coligação M5 + Lega, ao invés de diminui-lo.

Resultado geral: o presidente italiano recuou, a coligação M5/Lega fez concessões e arranjos, e vai assim o governo.

Está dado o labiríntico imbróglio da democracia europeia, que vai perdendo cada vez mais seu emblema “social”. A pergunta que se impõe é: o que pesa mais nesta tentativa de “dobrar” ou “domar” o eleitorado italiano: a xenofobia prometida pelo programa do novo governo ou as heresias diante do neoliberalismo, como a promessa de uma renda mínima, além do aumento nas aposentadorias?

Há outras perguntas que se impõem. Houve casos semelhantes de “intervenções” em países do continente a partir das lideranças da União. Em 2011, Berlusconi foi praticamente “apeado” do poder por pressão da então dupla Merkel-Sarkozy. Mas Berlusconi tinha contra si seu comportamento, digamos, pouco ortodoxo em matéria de decoro do poder. Na mídia mainstream ninguém chorou.

Em 2015, o governo do Syriza, liderado  por Alexis Tsipras, na Grécia, teve seu programa de esquerda simplesmente pulverizado pela UE, sob o comando, desta vez, da dupla Merkel-Wolfgang Schäuble, este o implacável ministro das Finanças alemão. Mas a Grécia representa um percentual muito pequeno do PIB da União e do Euro. Não houve muitas lágrimas pela artilharia anti-Syriza na mídia mainstream da Europa então.

Já a Itália é a quarta economia da Europa, a terceira da Zona do Euro e também a terceira da União no caso de se concretizar a defecção do Reino Unido, que até o momento parece inevitável, apesar dos esforços de Georges Soros no sentido de provocar um novo plebiscito a respeito.

Aliás, isto de plebiscito chama a atenção. Quando da constituição da União, planejada sob hegemonia de uma social-democracia autêntica e realizada sob uma hegemonia conservadora que engoliu os partidos social-democratas, realizaram-se plebiscitos em países recalcitrantes (como a França) até que o resultado fosse favorável à UE. Depois, adeus plebiscitos.

O exemplo mais uma vez vem da Grécia: Georgyos Papandreou, primeiro-ministro socialista do país, foi igualmente defenestrado em 2011 devido à pressão das lideranças da UE, por ter ameaçado fazer um plebiscito sobre o plano de “recuperação” econômica do país imposto pela União, pelo Banco Central Europeu e pelo FMI. Foi substituído pelo também tecno-burocrata Lucas Demetrius Papademos, ligado ao FMI, prova de que há plebiscitos que interessam e outros que não, e de que sempre haverá uma solução “técnica” à disposição da receita neoliberal.

Por outro lado, tem sido evidente a complacência, apesar das declarações tonitruantes, das lideranças da UE com governos de extrema-direita, como o de Viktor Orban da Hungria, ou o de Andrzej Duda e Mateusz Morawiecki na Polônia, além da política de avestruz diante dos desmandos de Mariano Rajoy e sua Guardia Civil na Catalunha.

Fica a pergunta sobre o cataclisma que aconteceria caso governos de esquerda assumissem o poder na Alemanha ou na França.

Conclusão: no mundo economicamente hegemônico do neoliberalismo, embora este não mais desfrute da hegemonia das ideias que teve no final do século passado, a democracia não é um valor “universal”, como ele mesmo gostava de apregoar, nem mesmo permanente.

Esta nova forma de “hegemonia”, diferente da do conceito clássico gramsciano – pois se impõe através da sua impulsão apenas dentro de uma série de agentes selecionados (como os golpistas brasileiros de um lado, ou dos tecno-burocratas europeus, ou ainda da “comunidade econômico-militar-midiática” dos Estados Unidos) –, se afirma a partir de sua dominação dos currículos em escolas de Economia, onde os jovens estudantes aprendem o beabá das coisas, assim como Tarzan aprendeu inglês nas cartilhas abandonadas na cabana de seu pai, para se sentir superior aos macacos que cuidaram dele depois do passamento daquele e de sua mãe, e tornar-se o seu “rei”. Exemplo: todo mundo é contra, mas tomem lá um aumento no preço da gasolina, seus babacas. Parente caiu, mas quem vai assumir?

Na Espanha renasce uma esperança: Rajoy cai, Sanchez, do Psoe sobe. Conseguirá fechar um governo com o Podemos?

Em resumo, em matéria de pensamento conservador, tem-se saudades de Winston Churchill, para quem a democracia era a pior forma de governo, “com exceção de todas as demais”.