país paralisado

A irresponsabilidade de análises abstratas e tentações autoritárias extremistas

Enquanto setores da esquerda tentam disputar narrativa em meio à paralisação dos caminhoneiros, extrema-direita instrumentaliza o movimento para fragilizar ainda mais a democracia

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Impasse em relação à paralisação dos caminhoneiros pode encobrir tentativa de impor Bolsonaro como o nome da direita

IHU On-Line – Muitos, ouvindo falar da greve dos caminhoneiros, a julgam em princípio um movimento popular a apoiar. As reivindicações até podem ser legítimas, mas devem ser vistas num contexto político mais amplo. Sem falar nos problemas que podem causar ao próprio povo, que tem dificuldade em deslocar-se ao lugar de trabalho ou adquirir mantimentos indispensáveis. Temos agora uma greve dos caminhoneiros que, na verdade, parece ser também um locaute (greve incentivada pelos empregadores), pela cumplicidade de setores empresariais do transporte. Alguns líderes negam violentamente tratar-se de um locaute e do seu ponto de vista subjetivo são honestos e coerentes. O que não impede uma orientação objetiva dominante em sentido oposto.

Além disso, há claramente setores da direita infiltrados, querendo desestabilizar o sistema democrático. Este, com todas suas falhas, nas mãos de um governo inepto e desgastado, certamente ainda é melhor do que uma saída autoritária. Um dos líderes do movimento dos caminhoneiros declarou, nas redes sociais, que era hora de derrubar os três poderes corruptos, chamando os militares para restaurar a ordem. Há testemunhos de quem passou junto à paralisação em certas estradas e viu cartazes pedindo a volta das forças armadas ao poder. Claro que essa pode ser uma posição não compartilhada por outros setores, num movimento heterogêneo e de muitas tendências.

Na quinta-feira dia 24, o governo fez um acordo com setores dos caminhoneiros, fazendo muitas concessões. Uma delas, a não reoneração da folha de pagamentos do setor de transporte de cargas, atende aos setores patronais, um indício da presença destes últimos no movimento. Vários caminhoneiros, com certa ingenuidade, declararam a jornalistas que ali estavam por orientação das empresas. O próprio governo indica que vai investigar alguns empresários.

O problema com o acordo é que ele foi feito com um setor de um movimento heterogêneo. Muitos não o aceitam. Mas mesmo assim, a Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), que não participou do acordo, pediu a desobstrução das estradas, mesmo mantendo uma mobilização de luta. Aliás, a Abcam denunciou que, em 5 de outubro de 2017 e novamente em 14 de maio de 2018, pediu ao governo uma audiência para discutir várias reivindicações, entre elas o aumento diário do diesel. Não teve resposta. O governo Temer não estava consciente nem preparado para o que viria. O que levou Fernando Gabeira a suspirar: “A falta que um governo faz”. É patético ver Temer e seu ministro da segurança pública, Raul Jungmann (ex-comunista bem articulado), pensarem convencer a opinião pública de que o governo age com firmeza e determinação. O fato de insistirem tanto nisso indica um subconsciente de incerteza.

Há um precedente interessante. Em 3 de setembro de 2013, José Eduardo Cardozo, então ministro da justiça do governo Dilma, determinou a abertura de um inquérito da polícia federal sobre a atuação do Movimento União Brasil Caminhoneiros (MUBC) em bloqueios de estradas naquela ocasião, com suspeitas de orientações e alianças que iam além da mera reivindicação da classe.

Os meios de comunicação ampliam perigosamente a situação. Ela é grave, mas em lugar de vê-la com atenção e cuidado, caem facilmente no sensacionalismo. Muitos se questionam: o que está por trás? Um apelo autoritário ou uma enorme irresponsabilidade suicida? Penso mais na segunda alternativa, com uma intenção de aproveitar a conjuntura grave para chegar a um acordo, até agora difícil, de um nome de direita para apoiar (Alckmin, Meirelles, talvez Álvaro Dias…). Uns optaram por Bolsonaro, mas os mais liberais o temem. Já deixaram de lado um Temer inexpressivo, mas para eles talvez o movimento grevista poderia ser a ocasião para obrigar a que se chegasse a um nome de consenso conservador. Mais que tudo os setores dominantes temem o prestígio crescente de Lula e o surgimento de outros candidatos populares (Boulos, Manuela e inclusive Ciro). Sua aposta é arriscada, jogando com uma realidade explosiva. Mais arriscada ainda é a política do governo de colocar o Exército nas ruas.

Em ano eleitoral, políticos quiseram aproveitar-se da situação. Assim, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, açodadamente, entrou com um projeto para zerar a alíquota do PIS/Confins sobre o óleo diesel. Ele e um seu consultor, ambos despreparados, ignoraram que a medida representaria um rombo nas contas do governo de cerca de nove bilhões. O presidente do senado, Eunício Oliveira, que participara de um vídeo com Maia, arrependeu-se publicamente dessa aliança. A liderança do governo criticou a proposta. Há toda uma acumulação de equívocos, que seria ridícula, não fosse perigosa.

Quero trazer uma lembrança histórica que acompanhei no Chile, em outubro de 1972. Ali, uma greve dos caminhoneiros também paralisou a país. Ficou claro que era, antes de tudo, um locaute, com a cumplicidade e financiamento patronal. O Instituto Privado de Investigaciones Economicas y Sociales (IPIES, equivalente ao IPÊS no Brasil de 1964) articulava o golpe e se aproveitava da situação. Além disso, como ficou evidente em documentos posteriores, o financiamento americano vinha diretamente aos caminhoneiros, principalmente através da multinacional International Telephone & Telegraph (ITT), que tinha entre os diretores um antigo diretor da CIA. Havia todo um movimento reacionário, com um setor de ultra-direita, Patria y Libertad,  para derrubar o governo popular de Salvador Allende. Mas ao mesmo tempo, setores de ultra-esquerda, como o MIR, criticavam o governo, taxando-o de pequeno burguês reformista. Foi quando um desses teóricos de um marxismo enlatado escreveu numa revista de esquerda um tonitruante artigo: “Bendita crise”. Para ele, ela aguçaria as contradições do sistema e permitiria uma mobilização das “massas”.

Valeria aqui um parêntesis. Na linha de Lênin em “O que fazer”, bíblia de uma esquerda radical, essa categoria, “massas”, abstrata e vaga, pareceria referir-se a um coletivo sem rosto – a ser dirigido pelas forças revolucionárias: a consciência deveria vir de fora, “nas mãos dos intelectuais revolucionários socialistas” e de um partido de quadros centralizado. “Uma organização militar de agentes”, diria Lênin em 1902. Aqui vinha o problema: na multiplicidade de partidos de esquerda, qual seria o partido “autêntico”, capaz de apropriar-se do processo? Na Rússia disputavam bolcheviques, mencheviques, social-revolucionários, populistas, anarquistas. Lênin impôs os primeiros e reprimiu implacavelmente os outros. Mais adiante, na esquerda, viriam trotsquistas e maoístas. Ficava a pergunta: quem se aproveitaria do processo para aguçar as contradições? Dito em termos mais corriqueiros, lembrando a fábula de La Fontaine, quem poria o guizo no gato? Setores de uma esquerda radical ainda hoje apostam na polarização social, aproveitando as contradições intra-burguesas. Um dos teóricos dessa posição, entre nós, fala repetidamente em “acumular forças” nessa ocasião.  Quais, nas mãos de quem, para quê?

Voltando ao Chile e à “bendita crise”, as forças do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) propunham criar um momento pré-revolucionário para superar um governo “pequeno burguês”. Não prepararam um novo momento histórico revolucionário, mas colaboraram na erosão da democracia chilena e da instigante experiência de “um socialismo em liberdade”.

No Chile, as “massas” não se mobilizaram na linha das receitas dos teóricos da ultra-esquerda. Um ano depois, em setembro de 1973, no momento do golpe, o povo simples das “poblaciones” resistiu heroicamente como pode, em movimentos isolados e foi impiedosamente esmagado. Mas não podemos esquecer que havia entre eles uma tradição de esquerda, principalmente na Unidade Popular, com movimentos, sindicatos e partidos. Os dirigentes revolucionários, junto com quadros da Unidade Popular e do governo, quando não foram mortos pela repressão implacável, correram para asilar-se nas embaixadas. Como funcionário da ONU, com certa imunidade, participei com outros colegas dessa operação de colocar militantes em várias dessas embaixadas, das mais incríveis maneiras[i]. O  teórico citado acima foi um dos que entrou numa delas, abarrotada de chilenos e latino-americanos.

Porque relembro isso tudo? Leio, entre nós, como indiquei, análises abstratas que falam de aproveitar as contradições intra-burguesas e “acumular forças”. Quem estaria à frente desse processo alternativo? As próprias massas, numa espontaneidade de uma Rosa Luxemburgo mal interpretada, ou um/uns partido/s de esquerda? Quais? Um certo “entrismo” de tradição trotsquista, diria que há que infiltrar-se em mobilizações sociais, no caso a greve-locaute dos caminhoneiros, para redirecioná-la.  Enorme ingenuidade que sairia de uma análise descolada do real sem levar em conta a disparidade das forças. O velho Marx dizia que havia que subir do abstrato para o concreto. Muitos dos seus discípulos ficam no rarefeito andar inferior das ideias.

Gostaria de dizer que é hora de chamar a atenção para a urgência de uma posição firme em defesa da democracia. Claro que este governo ausente e irresponsável não ajuda.  Mas temos logo adiante um processo eleitoral, que pode ser momento de afirmação democrática. Aqui entraria o que tenho repetido mil vezes: a necessidade de ir preparando uma Frente Ampla popular, nacional e democrática. Diante de rumores golpistas haveria ainda que juntar esforços com setores nacionalistas como Roberto Requião ou democratas como Bresser-Pereira.

O uso da palavra golpe, empregado para o processo do impeachment de Dilma e da prisão de Lula, por verdadeiro que seja, e estou de total acordo com a análise, pode desgastar uma palavra que volta agora em uma situação ainda mais grave, contra as frágeis instituições democráticas em seu conjunto.

Relembrar o tempo antes do golpe de 1964 ajuda. Desde 1963, figuras como San Tiago Dantas ou Celso Furtado, antes de tudo patriotas, procuravam alternativas políticas e econômicas a um golpe militar já em preparação. Celso Furtado e sua equipe tinham elaborado um Plano Trienal com uma estratégia gradualista e desenvolvimentista. San Tiago Dantas tentou implementa-lo como ministro da fazenda em começo de 1963. Setores da esquerda, de Brizola a movimentos como minha Ação Popular, vale a autocrítica, se opuseram violentamente ao Plano, taxando-o de reformista. Celso Furtado deixou o ministério do planejamento e San Tiago Dantas o da fazenda. Este último voltaria, às vésperas do golpe, com o que chamava uma “esquerda positiva”. Já com um câncer terminal – morreria em setembro –, hoje sua iniciativa poderia ser vista como um dramático e derradeiro esforço para salvar o processo democrático.

Há momentos de grande crise em que a conjuntura imediata se impõe e atropela análises de mais longo prazo. Parece que estamos num deles. Agora poderia ser tempo de uma firme posição em defesa da democracia, posta em perigo por um governo inepto que se liquefaz, por uma direita golpista que quer se aproveitar da situação e pela miopia de setores da esquerda de costas para as urgências imediatas.

*Luiz Alberto Gomez de Souza é sociólogo e diretor de Programa de Estudos Avançados da Universidade Candido Mendes (Ucam)

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