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Dificuldade de ampliar receitas da saúde revela economicismo

Professor da Unicamp afirma que prioridade para a área não supera barreira do discurso, o que é demonstrado pela resistência a destinar 10% das receitas para o SUS

Cebes

Nelson Rodrigues dos Santos vê política de Estado responsável por priorizar saúde privada

Histórico militante do Sistema Único de Saúde (SUS), o médico sanitarista Nelson Rodrigues dos Santos, da Unicamp, fala sobre o financiamento da saúde pública brasileira, das dificuldades que o Movimento Saúde+10 enfrenta para discutir com representantes da equipe econômica do governo e do Congresso a proposta de destinar 10% da Receita Bruta da União ao SUS e sobre a consciência dos direitos da população brasileira. Leia abaixo a entrevista.

O congresso e o governo sinalizam que não atenderão as reivindicações do movimento Saúde+10, que pede mais recursos para a saúde. Diante desse cenário, qual o papel das entidades da reforma sanitária e integrantes do movimento por 10% das RBU para a saúde pública?

Essa postura de governo, desde os anos 1990 e nos anos 2000, até agora, nunca mudou. A visão economicista tradicional no Brasil é mantida por uma política de Estado, não digo nem de governo, e tem uma opção por uma política pública neoliberal, como o modelo dos Estados Unidos. Ao longo desses 25 anos, nas lutas por políticas públicas constitucionais pelos direitos de cidadania, percebeu-se onde está localizado um centro de poder decisório. São três ministérios: Fazenda, Planejamento e Casa Civil. Podemos até chamá-los de Ministério de Estado. Os demais são ministérios de governo, que podem até ter alterações de governo para governo. Mas esses três são pétreos.

As estratégias desses três ministérios se repetem ao longo desses 25 anos, de forma chocante. Com todos os partidos e coligações que governaram ao longo desses 25 anos, esses ministérios tiveram o mesmo comportamento para as políticas públicas de cidadania. Eles trabalham numa linha de colocar os direitos da população como direito do consumidor em vez de direitos do cidadão.

Não é por outro motivo que, desde os anos 1990, passamos por um fenômeno em que todas as classes médias brasileiras têm opção por planos privados, que cresceram, nesse período, fortemente subsidiado pelo Tesouro Nacional. E mais do que isso, todas as classes trabalhadoras, sindicalizadas. Todas as centrais sindicais e sindicatos pleiteiam planos privados para os filiados. E todos conseguem e não brigam mais pelo SUS. Nos anos 80, as classes trabalhadoras e as centrais brigavam pelo sistema público.

O que está por trás dessa inflexão e perda de consciência social?

Essa virada de retirar todos os trabalhadores privados do SUS também aconteceu com os servidores públicos. Nos anos 1990, o governo federal passou a co-financiar planos para a totalidade dos servidores federais, dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Então, essa visão economicista tradicional está implantando um novo sistema público em nosso país: subfinanciado e somente para os pobres. Traduzindo em números, a estimativa da soma dos subsídios federais aos planos e seguradoras de saúde correspondem a mais de 30% por orçamento do Ministério da Saúde.

Tudo isso aponta para uma desativação das lutas trabalhistas por direitos sociais. Até a ditadura, iniciada em 1964, os trabalhadores lutavam por direitos trabalhistas. Após o golpe de 64, essas lutas se misturaram às lutas sociais. Por isso, a classe trabalhista tem, no Brasil, um histórico de aliança com a sociedade. A própria luta por uma Constituição cidadã e a luta por direitos de cidadania, e não apenas do consumidor, os trabalhadores participaram dela. Mas a partir de 1989 e década de 1990, houve uma estratégia de ir oferecendo para as classes médias e trabalhadores serviços privados de saúde. Sempre incutindo que os direitos de saúde seriam mais garantidos pelo sistema privado que pelo público. Uma verdadeira lavagem cerebral feita por uma política de Estado.

Esse mesmo processo foi visto em outros países que inspiram o sistema de proteção social brasileiro, garantido pela Constituição, ou que têm sistemas públicos de saúde que servem de modelo para o SUS?

Esse desvio no Brasil é um tanto inédito. Ele não aconteceu nos países europeus e no Canadá. A história dos europeus é misturada: a lutas dos trabalhadores e luta da sociedade forma um todo. É indissociável. Os serviços públicos europeus servem o conjunto da sociedade, inclusive a classe trabalhadora que luta por eles. Evidentemente, existem, nas nossas centrais sindicais, principalmente na Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) e em setores da Central Única dos Trabalhadores (CUT), uma visão crítica disso e uma preocupação de que a luta trabalhista convirja para a luta pelos direitos da cidadania. Mas está longe de ser uma visão hegemônica.

Nos países desenvolvidos da Europa, Escandinávia, Suécia e Canadá existe um pacto na sociedade em favor dos direitos de cidadania. É um pacto social, que fortalece a influencia do chamado sistema de políticas públicas, rotulado de social democracia, na garantia de direitos de cidadania. Diferente do que algumas pessoas pensam, o acesso a esses direitos não são sementes do socialismo, é um pacto dentro do capitalismo. Tanto que não há estatização. O sistema público assume responsabilidades e o mercado também assume. Em todos os países onde existe a experiência social democrata, os serviços públicos atendem a grande maioria da população, mas existe uma parcela que prefere pagar para ter um serviço privado. A proposta no Brasil é recriar no Brasil um modelo deste. É o que está na nossa Constituição.

Uma pesquisa divulgada no final do ano passado mostra que 96% dos brasileiros têm o plano de saúde entre seus desejos prioritários, atrás apenas da casa e do carro. Qual a leitura que se pode fazer desse dado?

Isso não é surpresa, principalmente porque uma parcela dos usuários de plano de saúde continuam a citar saúde em primeiro ou segundo lugar. Isso por que, no nosso país, os planos privados não atendem as suas demandas por direitos de cidadania, mas apenas os direitos de consumidor. O plano atende o valor da mensalidade paga pelo cidadão. Tem plano que custa R$ 100, outros vão até R$ 6 mil.

A grande maioria da população consome péssimos planos privados e se queixa da saúde também. Do ponto de vista de consciência de direitos, isso pode ser visto como uma oportunidade para politizar as classes médias sobre esse debate. Porque à medida que se amplia a consciência de direitos do consumidor para a consciência de direitos do cidadão, as classes médias podem brigar por um sistema público ao estilo europeu.

E como se reconstrói uma consciência de classe, cidadã e em defesa de uma saúde pública integral e de qualidade numa sociedade que tem como sonho de consumo um plano individual, restrito ao circulo familiar?

Aí nós entramos na responsabilidade das entidades da reforma sanitária, como Cebes, Abrasco, Abres, Rede Unida e tantas outras, que historicamente lutam por um SUS bom. Todas essas entidades são combativas e se mobilizam politicamente. Agora, elas têm uma responsabilidade ainda maior que é criar canais por onde todos os estudos, dados e conteúdos produzidos e discutidos sejam facilmente absorvidos pelo conjunto da sociedade. É preciso socializar esses conhecimentos através da democratização das informações. Na prática é tornar tudo isso assimilável e atraente.

É um trabalho complexo, principalmente se pensarmos que, cada vez mais, o SUS é apresentado como um sistema para os mais pobres, quase uma ramificação dos programas de transferência de renda e assistência…

Ao mesmo tempo nós temos que fazer uma crítica e combater uma estratégia “inteligente” dos setores de comunicação social governamental, daqueles três ministérios, e do mercado que contribui com a destruição da consciência social. Temos ainda a lei da oferta que gera demanda, com a mídia afirmando diariamente que são os planos privados que podem oferecer saúde de qualidade. Essa informação chega aos mais pobres, usuários exclusivos do SUS, e os planos investem em oferta e criam a demanda. Porque a sociedade não pressiona pelo sistema público? Por que o SUS tem uma sub oferta, extremamente precária, com muitas filas e a população não tem nem mesmo a informação de que ela pode ter acesso a um sistema público de altíssimo padrão. A população brasileira não tem a informação que existem sistemas públicos em outros países que são preferidos por 90% da população. Então, não é só um sonho de que é possível ter um bom sistema público de saúde. Ele existe na prática em dezenas de países.

Já está no Congresso o projeto de lei de iniciativa popular que propõe que o governo federal destine 10% da RBU para a saúde. Segundo estudos, o financiamento ideal para o SUS seria o dobro do atual. Logo, ainda que o governo federal vincule o orçamento do SUS à RBU o sistema público brasileiro continuará subfinanciado em aproximadamente R$ 45 bi. Qual o peso do subfinanciamento na negação do direito pelo SUS constitucional?

Quanto menos os governos gastar recursos públicos com saúde e outros direitos sociais vai sobrar mais dinheiro para fazer crescer o mercado e, principalmente, vai sobrar mais recursos para satisfazer a voracidade do sistema financeiro. Agora mesmo, em resposta ao Movimento Saúde+10 os três ministérios apresentam os mesmos argumentos como justificativa para não aumentar o orçamento do SUS. Dizem que já estão com quase metade do orçamento geral da união para pagar encargos da dívida pública, não temos mais dinheiro e precisamos criar novas fontes para poder atender a essa proposta. Aí é o próprio governo admitindo que a prioridade é atender a voracidade do sistema financeiro, que criou um canal por onde se escoam as riquezas nacionais.

Mas aí tem um problema também grave. Durante a década de 1990, os defensores do SUS também se mobilizaram em defesa da saúde pública, por novas fontes de financiamento. A criação da CPMF foi um exemplo disso. Seria uma contribuição social exclusiva para o SUS, mas logo que o tributo foi aprovado, esses três ministérios usaram parte dos recursos para pagar os encargos da dívida pública e a saúde ficou praticamente sem dinheiro a mais. Então, mesmo com a criação de novas fontes, o orçamento adicional da saúde corre o risco de ser absorvido por essa política de Estado. Hoje, o pagamento dos encargos da dívida é uma maneira de destruir o desenvolvimento de um país.

Na área da saúde, a reação do governo após as manifestações de 2013, foi coerente com o clamor das ruas?

A primeira coisa a ponderar é que o papel da pessoa física da presidenta da República tem um papel mais secundário daquele que é mostrado à sociedade. Apesar da legitimidade das urnas, a força do presidente é bastante relativa se comparada com o poder dos três ministérios já citados, que são estratégicos para as classes dominantes nacionais e para os acertos que fazem com a dominação financeira globalizada. É importante colocar isso para identificarmos onde residem os nossos inimigos principais e onde estão os vetores de uma política anti-pública. E a presidência da República tem que dançar nessa música. Dançou assim o presidente FHC, Lula e agora Dilma dança. A figura do presidente também tem que se submeter ao arranjo dos três ministérios.

As respostas do governo brasileiro às reivindicações populares apresentadas nas manifestações de junho, na área da saúde, tem sido coerentes?

De forma alguma. Depois dos movimentos de junho e julho de 2013, depois do pronunciamento da presidenta, do anúncio do “Mais Médicos” e da entrega de dois milhões de assinaturas de eleitores ao congresso pedindo por mais recursos, o Movimento Saúde+10 tem levado um não na cara. Os representantes dos três ministérios já disseram que o orçamento que sobra do pagamento dos encargos da dívida pública está todo amarrado e que somente com novas fontes de financiamento será possível atender à demanda apresentada.

Ao se negar a aumentar o orçamento da saúde em R$ 45 bi o governo brasileiro emite quais sinais?

Jamais o governo e seus representantes vão admitir que saúde não é prioridade. Mas o sistema sofre com o subfinanciamento. Entre 2002 e 2012, se comparamos os percentuais da receita corrente bruta que o governo destina à saúde veremos uma queda constante. E pior: o orçamento (em percentual) do SUS, vinculado ao crescimento do PIB, com o baixo crescimento da economia, tem decrescido. Isso porque o PIB cresce menos que a população e a inflação. Então o governo federal está esvaziando o SUS de recursos federais. E a saúde é tão pouco privilegiada que, nesses 10 anos, o crescimento dos recursos para a saúde foi de apenas um terço se comparado ao incremento para a assistência social. Foi apenas metade do acréscimo destinado à educação. Essas são medidas do valor que o governo federal dá para a saúde. Também cresceu menos que o dinheiro destinado à segurança pública. Aí está a verdade da prioridade.

Segundo estudos, o financiamento ideal para o SUS seria o dobro do atual. Até quando haverá lutas e mobilizações em torno de um financiamento adequado?

Quando as primeiras mobilizações da sociedade começam a dar certo e alcançam vitórias, a população tende a se mobilizar mais, porque ela desenvolve uma consciência coletiva e começa a perceber que, quando se mobiliza, consegue direitos. Hoje, o “desfinanciamento” do SUS e a “despriorização” que os governos federais fazem com o SUS conseguiram anestesiar a sociedade. Ela está num ponto em que ainda não deu um salto de qualidade de forma que perceba que ela tem que ir à luta para conseguir direitos na saúde. Então, a perspectiva histórica que a militância do SUS tem é que esses 10% da RBU, que é pouco ainda para o SUS dar certo, será o eixo em torno do qual a população vai se organizar e reivindicar muito mais. Essa mobilização está dependendo de sentir o gosto do significado dessa vitória.

O governo não quer dar os 10% das receitas brutas por puro radicalismo neoliberal. Esse percentual, hoje, ainda mantém o Brasil abaixo de Argentina, Chile, Costa Rica e Uruguai no gasto público per capita em saúde por ano. Se conseguirmos a vitória dos 10% ficaremos apenas um pouco abaixo desses países. Um estudo da Organização Mundial da Saúde mostra que a média do gasto com saúde pública em 15 países com sistemas de saúde pública, funcionando bem, é de 2,5 mil dólares públicos per capita por ano. No Brasil, gastamos 385 dólares públicos. Para termos um bom sistema não estamos olhando nem para os 2,5 mil, mas sim para 1 mil dólares. Se tivermos a vitória do Saúde+10 vamos para R$ 550. Dou esses números para mostrar como o governo não cumpre a Constituição na área da Saúde.

Publicado originalmente no site do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).

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