Mobilidade

Caos do transporte público afeta usuários e produz ‘sensação de fracasso’

Para a psicóloga Priscila Tamis, as situações limite vividas nos trajetos diários em São Paulo levam à uma 'radicalidade do cansaço'

Diário CPTM / reprodução

Ônibus e trens submetem diariamente população à indignidade e levam à reprodução da lógica da violência

Passar pelo menos quatro horas por dia no transporte público é trivial em São Paulo e outras capitais do país. Conjugadas ao tempo perdido, as condições desse transporte têm o poder de afetar de maneira importante a saúde dos usuários. Esse efeito acontece não apenas na saúde como conceito tradicional, mas também no seu sentido amplo, usado pela Organização Mundial de Saúde e pelo SUS. Essa definição entende que, mais que ausência de doenças, a saúde é uma condição de vida que permita ao sujeito um bem-estar físico, mental e social.

Com o objetivo de entender melhor o efeito dos trajetos cotidianos na produção de saúde e subjetividade, a psicóloga Priscila Tamis, em sua dissertação de mestrado, entrevistou profissionais de saúde da cidade de São Paulo sobre suas experiências com o transporte. O resultado não deixa de ser esperado, mas traz observações interessantes sobre o modo de vida que as metrópoles impõem a seus moradores.

A primeira constatação de Priscila está no campo político. As entrevistas de seu trabalho foram realizadas em maio de 2013, antes, portanto, da eclosão das manifestações de junho. Mesmo assim, as respostas obtidas mostram uma consonância com as pautas dos protestos pela melhoria do transporte público. “As conversas ficaram conectadas com o campo político. Todas as demandas das manifestações, como preço do transporte, lotação, conforto, tempo de viagem, falta de informação sobre as empresas que prestam o serviço, apareceram nas entrevistas”, conta Priscila.

Para a pesquisadora, isso mostra que o aparente efeito de massa que o transporte produz sobre as pessoas é só isso, uma aparência. “As pessoas têm noção do custo pessoal que o modo de transporte tem sobre elas, entendem o custo afetivo que isso traz”, diz. Só que nesse modo o corpo é levado ao limite, e sobra pouco espaço para que haja a formação de uma ação de cobrança.

Priscila também destaca o fato de que todos os entrevistados afirmaram que viver passou a ser uma grande tarefa a ser cumprida, em vez de uma experiência com diversas possibilidades. “Isso é uma questão da funcionalidade do corpo. Quem passa horas se locomovendo não tem energia para aproveitar aquilo que a cidade oferece. Esse privilégio é de minorias”, afirma. A maior parte das pessoas sequer consegue dormir o mínimo necessário. “Isso produz uma sensação de fracasso”, diz.

O impacto do cansaço e da falta de tempo nas pessoas é brutal. Sobra pouco espaço para a construção de um pensamento crítico. Mais que isso, o que sobra são pessoas que estão sempre no limite. “Há pouca tolerância com o outro. O que acaba acontecendo é a reprodução da lógica de violência. A humilhação cotidiana acaba sendo descarregada no outro”, afirma.

“A vida, o conceito de saúde como um todo não cabem nesse sistema em que vivemos”, dispara Priscila. Se saúde depende dos nossos modos de vida, do ambiente em que estamos, a constatação é que, de fato, estamos todos doentes.

Abaixo, trechos dos depoimentos colhidos pela pesquisadora.

De entrevistado que faz todos os dias o trajeto Pinheiros-Interlagos:

“E aí o transporte é meio isso, você tem que organizar, tem que ser uma tarefa ir até os lugares… Você tem que planejar o tempo de deslocamento para encontrar as pessoas, assistir um filme, para fazer qualquer coisa, pra chegar a tempo em uma reunião, é um trabalho a mais, é um trabalho de cálculo”.

De entrevistada que faz diversos trajetos entre o Tatuapé, Pinheiros e Jardim Keralux, na Zona Leste, além de realizar atendimentos domiciliares em outros bairros:

“Se estou no horário de pico fico pensando por que estou aqui… essas pessoas… a situação… é o transporte, o direito de todo mundo… e você passa por tanta violência… o povo te empurra… fico me sentindo meio mal. Mas ao mesmo tempo quando estou em um horário tranquilo penso como é legal o metrô, você vai e chega nos lugares e funciona… consigo ir de um lado para o outro de São Paulo em pouco tempo.

Participante que se desloca entre Diadema e Jardim Keralux:

“[…] São mais de duas, quase três horas de tranporte por dia, porque na volta geralmente é mais lento, três horas no total… são três horas perdidas, você fica nessa pilha… tem que ser produtivo […] às vezes você chega na sua casa e não está com saco para produzir… você chega na sua casa e quer descansar… aquilo acaba… aquele espaço do trajeto começa a ser o espaço onde começo a me pressionar um pouco… estudar… ser produtivo.”

Entrevistada que viaja entre Cachoeirinha, Centro e Guaianazes e passa sete horas por dia no transporte:

“Preciso ir ao médico porque acho que estou com varizes. Marquei já três vezes consulta e não fui porque estou chegando direto atrasada. Como vou pedir para sair para ir ao médico? Aí não vou. […] Você fica com a cabeça maluca… durmo muito pouco… quatro horas por dia, às vezes até menos. […] acordei numa irritação, com vontade de chorar, de arrancar o cabelo. Aí quem paga é o namorado… dormiu comigo, eu olhei para a cara dele e fiquei irritada com ele. Ele perguntando: o que você tem já chorando? E tudo chorando sem motivo, muito emotiva… aí tive uma consulta e o ginecologista falou que podia ser TPM. Eu falei: nunca tive esse negócio aí! E eu achava que era por conta das coisas que estavam acontecendo na minha vida.”

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