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Ciclo eleitoral e financiamento da saúde: subsídio para quem?

Pesquisador do Ipea demonstra como os incentivos dados pelo governo aos planos privados prejudicam e retiram recursos do sistema público de saúde brasileiro

gestaosaude.com / reprodução

Alguns países, como Austrália, Canadá e Estados Unidos oferecem, cada um a seu modo, incentivos governamentais aos contribuintes, mediante a redução dos impostos, para o consumo de planos privados de saúde. Tal incentivo representa um gasto tributário, se percebido como imposto não recolhido ou como gasto público não aplicado diretamente nas políticas de saúde.

Expressando visões antagônicas, a renúncia pode ser vista, ou reforçando a política de contenção de custos no setor público, ou promovendo a rentabilidade do setor privado (ou, ainda, compensando os supostos efeitos negativos da carga tributária e do ‘abuso do usuário’).

Sem entrar no mérito dos subsídios destinados à oferta (indústria farmacêutica e hospitais filantrópicos), o Brasil segue essa tendência, uma vez que não só os gastos com planos de saúde, mas também com profissionais de saúde, clínicas e hospitais privados, podem ser abatidos da base de cálculo do imposto a pagar, tanto da pessoa física quanto da pessoa jurídica, reduzindo a arrecadação tributária do governo federal.

Em particular, uma vez que os mecanismos privados de financiamento tendem a afetar, negativamente, o setor público de saúde, pode-se afirmar, de um lado, que a renúncia subtrai recursos do Sistema Único de Saúde (SUS), que poderiam melhorar o acesso e a qualidade dos serviços; de outro, que a renúncia reforça a iniquidade de todo o sistema, piorando a distribuição do gasto público per capita para certos grupos da população.

Nesse sentido, considerando esses efeitos colaterais sobre o financiamento do SUS e sobre a equidade do sistema de saúde brasileiro (público e privado), parece moralmente razoável reivindicar que o Estado atue no sentido de atenuar esse conflito distributivo, decorrente da aplicação de subsídios dirigidos aos estratos superiores de renda, que acabam favorecendo a rentabilidade das operadoras de planos de saúde, hoje, altamente lucrativas.

Entretanto, essa agenda, que resgata a noção da saúde enquanto direito social, apresenta limites claros no plano ideológico e político: no curto prazo, a denúncia de tal conflito parece insuficiente para encorajar a adoção de medidas governamentais.

No plano ideológico, a renúncia não é percebida enquanto peça-chave para a reprodução econômica do subsistema privado. Enfim, não se trata de uma desoneração qualquer, pelo contrário: ela foi e é essencial para a estrutura e a dinâmica do mercado de planos de saúde.

No plano político, apesar de Dilma Rousseff combater com sucesso a pobreza e a desigualdade, contrariar determinados interesses cristalizados na relação Estado/sociedade, pode gerar realinhamentos imprevisíveis no ciclo eleitoral.

O governo federal seria contestado nos gabinetes, nas urnas e nas ruas pelas ‘classes médias’, que gozam desses subsídios e têm influência na opinião pública. Seria atacado também pelos sindicatos do setor público e privado, cujos trabalhadores teriam, provavelmente, uma elevação de suas despesas; pelo conjunto do mercado, que perderia parte de suas receitas, uma vez que o gasto tributário patrocina o consumo de bens e serviços privados de saúde.

Apesar desse quadro defensivo, na atual correlação de forças, não é correto naturalizá-lo, uma vez que tal quadro resultou da ação humana, condicionada por interesses econômicos e políticos, neste período histórico, tampouco manter desregulada a prática da renúncia de arrecadação fiscal (afastada do controle governamental e do marco constitucional do SUS).

Tendo em mente as incertezas da economia mundial, a depender da taxa de crescimento, do caráter anticíclico da política fiscal e do escopo das ações regulatórias da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), haveria mais ou menos espaço para mudar essa situação. Seria necessário construir também uma sólida base de apoio social e congressual para convencer o governo federal acerca das ‘externalidades positivas’ da redução ou da eliminação dos subsídios, desde que tais recursos fossem aplicados na atenção primária (programa de saúde da família / prevenção) e na média complexidade (prática clínica com profissionais especializados e com recursos tecnológicos de apoio diagnóstico e terapêutico) dentro do setor público. Afinal de contas, o subsídio destinado ao consumo dos planos alcançou a cifra de R$ 7,8 bilhões em 2011 (equivalente a pouco mais de 10% do gasto público federal nesse ano).

Nas eleições de 2014, ouvindo a voz da juventude por mais democracia, o bloco histórico sanitarista deve lutar para ampliar o financiamento, para melhorar a qualidade da gestão e para fortalecer a participação social do SUS, mas, ao mesmo tempo, na crítica à privatização, deve propor a criação de estruturas institucionais e mecanismos regulatórios para reduzir o gasto dos trabalhadores, das famílias e dos idosos com planos privados de saúde, serviços médico-hospitalares e remédios, tornando nosso sistema de saúde verdadeiramente único.

* Técnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia – DIEST/IPEA. Autor do livro SUS: o desafio de ser único, Editora Fiocruz, 2012. Membro da rede Plataforma Política Social.

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