Lazer escasso

Seis mil jovens vão passear no shopping. Pense de novo sobre a proibição ao funk

Multidão de jovens em shopping da zona leste de São Paulo escancara desigualdade reprimida em centros comerciais, em que a exclusão econômica não é a única, e a falta de opções de lazer na periferia

Alessandro Valle/ABCDigipress/Folhapress

A adoção do shopping como central de diversão é emblemática sob vários pontos de vista

A cultura dos grandes centros comerciais, onde podemos satisfazer os sonhos de consumo – e depois sonhar mais alto – está tão enraizada nas grandes cidades que ninguém acha estranho termos pelo menos 59 deles na cidade de São Paulo, 48 na Grande São Paulo e 40 na cidade do Rio de Janeiro. No total, havia 766 shoppings no Brasil em 2010.

O grande ícone urbano do nosso tempo é também um importante espaço de lazer. Uma pesquisa recente, realizada por uma revista semanal, mostrou que no Rio de Janeiro já se vai mais ao shopping que à praia. Justo os cariocas, que adoram falar que shopping é praia de paulista, foram também seduzidos pela reunião de praticidade, estacionamento fácil, ar-condicionado e diversas opções de atividades. A Polícia Federal também se rendeu aos encantos dos centros comerciais, nos quais abre frequentemente postos de emissão de passaportes.

Se até quem tem o Pão de Açúcar e o Corcovado como paisagem diária adora um shopping, qual a surpresa em ver milhares de jovens da periferia paulistana promover um mega-encontro em um deles? No último sábado, dia 7, cerca de seis mil pessoas compareceram a um ‘evento’ marcado por meio do Facebook no Shopping Metrô Itaquera, na zona leste da capital. Não parecia haver qualquer objetivo que não “conhecer gente”. O shopping recebe 65 mil visitantes diariamente. Um dado de 2009 mostra que apenas o Mc Donald’s atendia mais de seis mil pessoas por dia em média. Mesmo assim, os seis mil jovens causaram comoção. Há relatos de arrastão e uso de bebidas alcoólicas e de maconha. A polícia foi chamada e os comerciantes fecharam as portas mais cedo. Curiosamente, o próprio shopping nega que tenha havido arrastão, mas há investigações em curso.

As três atividades acima são ilegais e não devem ser toleradas em local algum, é claro. Mas o que importa aqui não são as contravenções ou delitos cometidos. Até porque ninguém foi preso, o que, em princípio, prova que não ocorreu nada mais grave. Os pontos importantes nesse caso são outros.

O primeiro é o escancaramento da desigualdade representada pelos shopping de uma maneira geral. Aquele local tem capacidade para 150 mil pessoas. Mas não pessoas quaisquer. Quem vai ao shopping, por definição, tem algum dinheiro para gastar, se não imediatamente, pelo menos no futuro. A exclusão econômica é a mais óbvia, mas não é a única. Os frequentadores aceitam as normas não escritas de convivência dentro desses locais. Não há algazarra, não há música. Há a ordem. E seis mil jovens pobres violaram essa regra, perturbaram os 150 mil. Por isso viraram notícia.

Caso pior se deu em Vitória, no Espírito Santo. Para fugirem da polícia, que encerrou com violência um baile funk nos arredores, jovens correram para se refugiar dentro do shopping Vitória. Não houve qualquer crime, mas todos foram tratados como se criminosos fossem. Sentados no chão, com as mãos na cabeça, os jovens eram vigiados pela polícia até que tudo fosse averiguado. Apenas não havia nada para averiguar, a não ser a violência policial.

Nessas cidades desiguais, os shoppings podem ser violentos com esses jovens, mas continuam sendo o ideal de lazer existente. Tanto que proliferam no Facebook eventos que organizam essas visitas em massa a diversos shoppings da capital e da Grande São Paulo. O argumento é tão repetitivo que se torna clichê, mas continua sendo verdade. Não há opções de lazer para jovens de periferia. Há poucos parques, os cinemas ficam longe e custam caro, não há onde ouvir música sem que a polícia chegue para acabar com a festa. Pior: a juventude é pouco ouvida para opinar sobre as políticas públicas de lazer.

Aqui, retomo o assunto do último post. A proibição dos bailes funk na rua só faz piorar essa situação. Não importa o quanto o funk seja execrado por quem se sente mais “esclarecido”, ele é uma expressão cultural legítima e mobiliza jovens. Não existe sentido na ideia de reprimi-lo com uma lei. Isso simplesmente não é democrático nem ajuda no convívio social. O conflito de interesses não pode ser resolvido com uma lei que só atende a um dos lados. Discutir uma solução em conjunto dá um trabalho infinitamente maior. A alternativa autoritária é mais fácil, porém inaceitável.

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