Planejamento

Quando o Plano Diretor não é a salvação

Especialistas em planejamento urbano afirmam que por melhores que sejam as intenções, lei não tem poder de modificar profundamente as condições das cidades

Marcelo Justo/Folhapress

Na visão de especialistas, bairros valorizados, como o paulistano Itaim Bibi, seguirão ganhando

A aprovação de um Plano Diretor é vista por muita gente como essencial para que as cidades se tornem ambientes melhores para seus moradores (e tive essa mesma visão até agora). Mas há cada vez mais um entendimento diferente por parte de urbanistas. O Plano Diretor pode ser um instrumento de ordenação da cidade, mas tem poderes limitados e, pior, acaba sendo uma lei “opcional”, não cumprida pela maior parte dos atores que atuam na construção do espaço urbano.

Urbanistas paulistanos lançaram ontem um manifesto no qual pedem alterações significativas no projeto de Plano Diretor de São Paulo, que está em processo de revisão. Entre outras reivindicações, epedem sanções para o descumprimento do plano e mais instrumentos para diminuir a exclusão social da cidade.

O urbanista João Whitaker, um dos signatários do manifesto, explica que a cidade é resultado de forças políticas e econômicas que não necessariamente podem ser reguladas com um plano. “A segregação social, a tendência de mandar os pobres sempre para mais longe, não mudará com o que foi proposto até agora”, diz. Além disso, ele afirma que esse plano específico não primou por ser um conjunto de regras de simples aplicação e fortes intenções, e sim um longo texto com muitos detalhes de regulação. “A complexidade faz com que haja dúvidas sobre sua aplicabilidade”, afirma.

Há opiniões ainda mais radicais sobre os planos diretores. Um desses céticos é Flávio Villaça, autor do livro A Ilusão do Plano Diretor. Ele afirma que em 70 anos de presença do PD nas discussões sobre nossas cidades, não houve um exemplo sequer de sucesso em sua aplicação. “É impressionante como um instrumento que praticamente nunca existiu na prática possa ter adquirido tamanho prestígio por parte da elite do país”, diz ele em sua obra.

Villaça acredita que o zoneamento, que é de fato a lei que é cumprida, é um instrumento de perpetuação das diferenças socioeconômicas dentro das metrópoles. “O zoneamento – isso eu garanto – continuará protegendo a qualidade de vida dos bairros ricos do Quadrante Sudoeste”, afirma.

O Plano Diretor tem influência limitada por diversos motivos. Um deles é o fato de que a legislação conta com muitos planos separados para reger o planejamento urbano. Em São Paulo, são 11 desses documentos, a saber: Plano Diretor Estratégico; planos municipais de Saneamento Básico; de Educação; de Assistência Social; de Saúde; de Cultura; de Circulação Viária e de Transportes; de Habitação; Plano Diretor de Resíduos Sólidos; Revisão da Lei de Uso e Ocupação do Solo e Planos Regionais. Todos devem, de acordo com a lei, estar articulados entre si. Só esse fato já conta muito para o insucesso de tantos planos, já que a dificuldade prática de integrá-los é imensa. Mas há outras dificuldades.

O Plano Diretor aprovado em São Paulo em 2002 é, para Villaça, uma coleção de princípios genéricos, sem previsão de aplicação, chamados de Ações Estratégicas. “São uma enxurrada de propostas de ações enunciadas sem que se saiba quem vai executá-las, nem quando, nem como, nem com que recursos”, diz. Essa é uma das críticas presentes no manifesto publicado ontem.

Para além da questão do cumprimento do que está escrito no plano, há uma questão política a ser resolvida. Se o PD, que tem força de lei, prevê certo conjunto de obras e intervenções, não estará tomando o lugar do Executivo como indutor de políticas para a cidade? Apesar de haver um clamor para que obras e projetos não mudem radicalmente de uma administração para outra, não está claro se perpetuar determinados objetivos práticos em uma lei é benéfico para a cidade. Uma obra ou intervenção pode perder o sentido com o passar dos anos, sem mencionar a possibilidade da aprovação de emendas de última hora às vésperas da votação do documento.

Participação popular em xeque

Esse último problema é talvez o mais importante. Apesar de grandes esforços envolvidos na participação dos cidadãos na elaboração da proposta de revisão do Plano Diretor – assim como aconteceu na época da aprovação do plano original – o fato é que os grandes atores dos setores imobiliários não dão as caras nas audiências públicas. Eles têm espaço garantido nas agendas de integrantes do Executivo, Legislativo e, se necessário, do Judiciário, para encontros privados e com mais possibilidades de influência na agenda pública.

“A participação política do Secovi e de outras entidades patronais ligadas a atividades imobiliárias continuará superando a participação popular formal das assembléias e reuniões”, acredita Villaça, que vai além. “A chamada ‘participação popular’ nos planos diretores continuará a ser uma cortina de fumaça para desviar a atenção da sociedade dos reais problemas de nossas cidades – a desigualdade de poder político e econômico”, decreta.

O julgamento do urbanista é severo, mas não dá para ignorar as questões levantadas, já que o Plano Diretor pouco foi respeitado em São Paulo durante toda sua existência. O processo de construção de uma cidade melhor para os grupos sociais excluídos parece não passar pelo plano, e sim por ações que reafirmem a função social da terra urbana.

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