Entre livre expressão e construir sem questionamento, Justiça escolhe segunda opção

Com um sentimento difuso de impotência, a cidade vai aceitando ser moldada pelo desejo das construtoras

Artigo19/Divulgação

Intervenção mostrou que insatisfação com a verticalização e com a falta de espaços públicos é comum entre a população

A intervenção começou sem sequer saber que era uma intervenção. Mas a adesão das pessoas cresceu, a ideia ganhou uma página no Facebook, desagradou uma grande empresa e gerou uma decisão judicial vergonhosa: estava proibido criticar uma construção. A história da intervenção urbana O Outro Lado do Muro é longa e está longe de acabar, mas vale a pena ser contada e acompanhada de perto.

Ela é um exemplo claro da nossa sociedade patrimonialista, de uma Justiça que decide pelo lado mais forte, de cidadãos que não acreditam em seu poder e de uma cidade que pouco ouve.

Ao chegar de uma viagem de férias, o engenheiro agrônomo Ricardo Fraga percebeu a construção de um stand de vendas de apartamentos em um terreno do tamanho de um quarteirão, perto de sua casa na Vila Mariana. O espaço havia ficado abandonado por 60 anos antes de a construtora Mofarrej iniciar seus planos para a construção de um condomínio residencial.

Talvez abandonado não seja a palavra. O terreno era limpo constantemente, para evitar que a vegetação tomasse conta do local e, provavelmente, para afastar acusações de abandono do imóvel. “Quando vi que aquele local ia ter mais um condomínio, senti uma dor intensa, pois já tinha imaginado como seria usar o espaço para um uso público. Foi aí que eu quis saber se outras pessoas sentiam o mesmo”, diz Fraga.

Esse foi o início da intervenção O Outro Lado do Muro. Fraga colocou duas cadeiras junto ao muro e passou a convidar os pedestres para subir e olhar o espaço vazio do outro lado. Em seguida, ele convidava as pessoas a imaginar que tipo de uso elas imaginavam para aquele terreno e desenhar sua ideia em uma lousa. O desenho era então fotografado e o conjunto de fotos era exibido no mesmo local aos sábados e domingos. Isso aconteceu em junho de 2011, bem antes do início das obras.

Durante as conversas com os moradores mais antigos do bairro, Fraga ouviu relatos sobre a existência de um curso d’água atravessando aquele terreno. Não havia indícios visuais de sua existência, no entanto. O engenheiro, que é servidor público da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, dedicou-se então a buscar uma confirmação para esse fato. De maneira “civil”, como ele faz questão de frisar. “Todos os pedidos de informações na Secretaria foram feitos como cidadão. Eu ia ao setor, preenchia o requerimento como qualquer outra pessoa”, garante. Se seu trabalho na Prefeitura lhe dava alguma vantagem, era a de conhecer os meandros da burocracia.

Inicialmente a pesquisa não gerou dados conclusivos, mas sim indícios de que, de fato, havia um córrego aterrado atravessando o terreno. De acordo com o Código Florestal – que é aplicado também em áreas urbanas – deve haver uma distância de 50 metros entre cursos d’água e qualquer construção.

Por conta desses indícios, a obra foi embargada pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente e permaneceu parada por oito meses. O pedido de embargo foi realizado com base nas informações batalhadas por Fraga, mas quem tomou a dianteira institucional a partir daí foi o Movimento Defenda São Paulo, que encampou a luta.

O embargo caiu por conta de um parecer expedido pela Cetesb, que dizia que se o córrego estava canalizado ele não teria função ambiental, e, portanto, a construção não precisava parar. “Na minha opinião, isso vai contra a proteção do meio ambiente. Em vários lugares do mundo a opção é de reabrir os rios. Não se pode tomar uma decisão dessas olhando para o passado, mas sim em que uso aquela área pode ter no futuro”, acredita o engenheiro.

Depois disso, Fraga achou mapas mais conclusivos sobre a existência do córrego. Mais uma vez, então, a obra foi embargada pela Secretaria do Verde, em dezembro de 2012. Entretanto, os trabalhos não pararam. A empresa alegava que, como a autorização para o empreendimento era composta por dois alvarás, um da Secretaria do Verde e outro, da de Habitação, a proibição deveria vir das duas partes.

No mês seguinte, após a troca da administração municipal, o prefeito Fernando Haddad decidiu suspender também a autorização da Habitação. Dessa forma, as obras estacionaram mais uma vez. Entretanto, essa paralisação durou pouco. Cerca de 20 dias depois, a Cetesb, que tinha sido consultada novamente para a apreciação das novas informações sobre o córrego, deu um parecer muito semelhante ao anterior. As obras foram liberadas mais uma vez e não há previsão de que serão importunadas novamente.

Processo

Esse poderia ser o fim de uma história de participação social e de transparência nos processos públicos, ainda que sem qualquer mudança no resultado final, que é a construção de três enormes torres residenciais com muitas vagas na garagem.

Todos os detalhes do licenciamento foram publicados na página do Facebook. Cerca de duas mil pessoas acompanhavam a saga online. A construtora Mofarrej, no entanto, não ficou satisfeita. Em março deste ano, a empresa entrou com uma ação contra Ricardo, exigindo que ele apagasse as menções à obra, que não se manifestasse sobre o assunto no raio de um quilômetro do empreendimento e pedindo indenização por danos morais – R$ 100 mil – e materiais, como prejuízos trabalhistas, lucros cessantes e outras perdas advindas da paralisação da construção. Sem sequer ouvir o que o engenheiro tinha a dizer, o juiz de primeira instância acatou o pedido.

As duas partes entraram com recursos. Fraga pediu a reversão da decisão e a Mofarrej exigia a exclusão da página da intervenção. Os desembargadores da segunda instância decidiram manter a censura, diminuindo, no entanto, seu alcance. Agora, ele não pode falar sobre o assunto no mesmo quarteirão das obras, e a página do Facebook continua online, embora sem qualquer menção às obras ou à Mofarrej, sob pena de multa de R$ 10 mil por citação indevida.

Esse é um dos primeiros casos julgados no Brasil sobre liberdade de expressão na internet. O precedente aberto é, até agora, preocupante. É fato que Fraga não foi completamente calado. Ele pode falar sobre o assunto publicamente, mas sem o amplificador que são as redes sociais.

De acordo com Camila Fraga, advogada que representa o ativista, a decisão de interferir na liberdade de expressão vai contra os tratados internacionais a respeito. “Caso a restrição fosse necessária, o Judiciário deveria buscar outras saídas menos intrusivas do que o bloqueio total das manifestações na internet e a proibição de se aproximar da obra.”.

Esse processo pode acabar sendo decidido no Supremo Tribunal Federal. Atualmente, tramita novamente na primeira instância, para apreciação da pertinência ou não da cobrança de indenizações. Só depois desse passo, que pode levar alguns anos, será possível apelar para instâncias superiores.

Participação

Toda essa história mostra um lado perverso da sociedade brasileira e de seu sistema Judiciário. Mas mostra também a capacidade de ação e participação que qualquer pessoa pode ter. Uma iniciativa individual e até bastante singela acabou virando uma luta coletiva contra os princípios que regem a urbanização de São Paulo.

Dando voz às pessoas na rua, Fraga percebeu que o sentimento contra a interminável verticalização dos bairros era compartilhado por muitos. Só que dar voz a uma insatisfação pouco elaborada não é fácil. Assim, com um sentimento difuso de impotência, a cidade vai aceitando ser moldada pelo desejo das construtoras.

Mas não precisa ser assim. É possível dar voz aos desejos contrários a esse tipo de urbanização e deixar que, na esfera política, esses conflitos se resolvam democraticamente. É tão possível e tão palpável que a empresa em questão recorreu à Justiça para calar uma pessoa.

Se o cidadão Fraga tivesse obtido sucesso em paralisar ou modificar de maneira importante o projeto do condomínio, o precedente estaria aberto. Mas na verdade, ele já está. Fraga está calado, mas os outros 11 milhões de paulistanos não estão.

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