Shopping na Turquia mostra que forças que atropelam o povo atuam no mundo todo

Manifestantes de Istambul não querem apenas que parque que vai desaparecer para dar lugar a centro de compras seja preservado, mas que suas vozes sejam ouvidas

Tolga Bozoglu. EFE

Os turcos estão mostrando que nem sempre governo e empresas têm êxito em intervenções tão ofensivas

Há cinco dias Istambul, maior cidade da Turquia e uma das mais icônicas metrópoles do mundo, está sendo o palco de protestos contra o governo central, dominado há dez anos pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP). Centenas de pessoas ficaram feridas e pelo menos duas foram mortas. O governo afirma que 1,7 mil pessoas foram presas, embora muitas já tenham sido liberadas.

O primeiro protesto, ocorrido no último dia 28, teve como motivação a permissão dada pelo governo para a remoção de um parque na praça Taksim, numa das áreas mais movimentadas da cidade, para a construção de um shopping. Relatos de moradores dão conta de que o protesto era pequeno e totalmente pacífico. Depois de passar a noite em barracas no parque, os manifestantes postaram-se em frente às árvores para impedir sua remoção. Mesmo assim, a polícia usou gás lacrimogêneo e jatos d’água para debelar o grupo.

O uso da violência aumentou o número de participantes. Para impedir que as pessoas chegassem à praça, todos os meios de transporte foram paralisados e as pontes que ligam as três partes da cidade também foram bloqueadas. Ainda assim, uma multidão seguiu a pé para Taksim para continuar os protestos.

O que começou como uma causa localizada despertou nos turcos a revolta contra os métodos violentos e autoritários do governo. Apesar de não haver uma agenda organizada, há uma comoção geral em relação ao desrespeito à democracia no país.  Outras medidas, como a de proibir beijos nas ruas e a venda de bebidas alcoólicas, também entraram na lista de reclamações. Moradores da capital Ankara e de outras cidades (a rede BBC, do Reino Unido, fala em mais de 60) também estão protestando. Apesar de as ruas estarem tomadas, a mídia local, em grande parte controlada pelo governo, não mostra as manifestações.

Tive o privilégio de conhecer Istambul em uma viagem de campo durante o mestrado. Fiquei muito impressionada com o uso dos espaços públicos pela população. Algumas ruas de comércio funcionam até 23h, os parques estão sempre cheios e os mercados de rua, lotados, vendem uma variedade incrível de produtos.

O objetivo da viagem foi conhecer os bairros Fener e Balat, comunidades tradicionais da área, que têm grande diversidade de estilos arquitetônicos e histórico de convivência de diversos grupos religiosos. À época, a área era alvo de tentativas de “reabilitação”, o que normalmente é o codinome para expulsão dos moradores e demolição dos prédios antigos para a construção de novos empreendimentos.

As forças que agem nas metrópoles de todo o mundo são bastante semelhantes. O mesmo processo de gentrificação se dá em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Cidade do Cabo, na Cidade do México. A lista não acaba. E foram essas forças, que mais uma vez passaram por cima da vontade da população, que motivaram o início dos protestos. Os manifestantes não querem apenas que o parque seja preservado, mas que suas vozes sejam ouvidas e que as empresas não tenham tanto poder para decidir o destino de bens públicos.

Não se sabe ainda se os protestos resultarão em algo como a “primavera turca”, até porque a Turquia já é uma democracia, apesar dos problemas. O governo refreou a ação violenta da polícia e tenta convencer os manifestantes a voltarem para casa. Até agora, o apelo não teve sucesso. É preciso tempo para saber se as reivindicações trarão reformas ou se os manifestantes serão vencidos pelo cansaço. Mas a demonstração de força e resiliência que a população vem mostrando até agora é um alento: nem sempre governo e empresas conseguem intervir de maneira tão incisiva no território sem enfrentarem resistência.