Projetos comunitários devem servir como norte para atuação do poder público

O livro reúne projetos premiados de ação local, realizados essencialmente por pessoas comuns (Foto: reprodução) O arquiteto e urbanista Marcos Rosa é um dos organizadores do livro Handmade Urbanism. Formado […]

O livro reúne projetos premiados de ação local, realizados essencialmente por pessoas comuns (Foto: reprodução)

O arquiteto e urbanista Marcos Rosa é um dos organizadores do livro Handmade Urbanism. Formado pela USP, Rosa buscou na Alemanha uma abordagem mais construtiva dentro do planejamento urbano. Dessa forma, acabou se envolvendo nas conferências Urban Age, que foram o palco para a criação do mapeamento de projetos sociais mostrado no livro. Ele ajudou a conceitualizar e a estabelecer a plataforma de pesquisa que mapeou os projetos contidos no livro. Essas conferências ocorreram nas cinco cidades estudadas no livro: Mumbai, São Paulo, Istambul, Cidade do México e Cidade do Cabo.

Em visita ao Rio de Janeiro, Rosa adiantou que, em 2013, a Cidade Maravilhosa será o palco para a conferência e o mapeamento de projetos comunitários. Até o final do ano, as iniciativas populares transformadoras serão mapeadas e avaliadas. A escolha é importante no atual momento da cidade, que passa por intensas transformações e tensões por conta das obras e ações para a Copa de 2014 e Olimpíada de 2016.

Confira abaixo a conversa com o autor:

A literatura disponível na academia sobre participação no planejamento urbano tem um tom pessimista. Apesar de reconhecer sua importância, os acadêmicos em geral não conseguem sugerir alternativas para a falta de tempo e de interesse das pessoas. O que achei interessante do livro é que o enfoque é totalmente diferente: não são as pessoas reagindo a uma ação do poder público, mas sim tomando iniciativa na sua própria comunidade. Você vê a questão dessa maneira também?

Vejo. Os projetos do livro começaram como respostas e soluções a urgências latentes, a todo tipo de pauta que existe, os problemas que a gente conhece. São desafios enormes na área do planejamento e começamos a perceber que esses projetos, que têm sim uma série de deficiências, apresentam respostas interessantes para o planejamento. Tem uma correlação importante das teorias das décadas de 60 e 70 que estão virando realidade agora. A Olimpíada de Barcelona é um exemplo. Uma vez ouvi de um dos arquitetos envolvidos no planejamento do evento que foi um processo incrível de participação, mas que teve uma intensidade tão grande que ele não faria de novo. Ele disse isso rindo. Ou seja, há exemplos de que haja participação e de que ela pode funcionar. 

No entanto, continuamos construindo cidades com conceitos ultrapassados, expandindo a periferia ao gosto dos empreendedores imobiliários, sem reconhecer a necessidade desses espaços públicos nem as de outros espaços, como pequenos comércios. 

Uma das coisas que a gente devia ter aprendido com o que os europeus fizeram no pós Segunda Guerra é como reconstruir cidade e construir habitação pensando na complexidade que uma vizinhança tem que ter. Não são só apartamentos, é muito mais complexo que isso. Alguns lugares no Rio, em São Paulo e outros funcionam como laboratório, inclusive. A favela é o maior exemplo disso. Tem uma garagem embaixo onde funciona uma padaria, uma lojinha ou coisa do gênero e em cima tem a moradia. Isso está se multiplicando numa velocidade absurda. Os bancos estão preparando microcrédito para esse público, por conta do aumento da renda dos moradores das favelas.

Os projetos de urbanização de favelas já demonstram que na medida em que as pessoas têm a segurança de que vão ficar ali mais tempo, investem na própria casa, reformando, melhorando. Uma vez colocado o básico (esgoto, água, energia, transporte), o resto vai acontecendo por si. Mas os outros serviços públicos (praças, locais de convivência e serviços de educação e cultura) não necessariamente vão se construindo por si só. Pode acontecer e vimos muitos projetos que fazem isso, mas acredito, como arquiteto, que na hora de desenhar essas estruturas, podemos pensar em espaços que tenham capacidade para receber esses usos. Acho que o planejador tem a responsabilidade de pensar como operam esses projetos e as pessoas no espaço urbano, entender do que precisa esse espaço para receber esses projetos e tenham sucesso. Temos ferramentas e conteúdos para fazer isso.

Quais são os pontos em comum dos projetos analisados? 

São todos projetos da sociedade civil: moradores, comunidades, junto com ONGs, artistas, com ou sem apoio da cidade. Um dos critérios para a escolha foi entender quantas camadas estão envolvidas no projeto, quantos atores são. Outro critério foi buscar projetos que já existiam, já estavam estabelecidos e eram sustentáveis ao longo do tempo, do ponto de vista social, econômico e ecológico. Não é a ONG que distribui a sopa, mas um projeto que entendeu como se faz a sopa, do começo ao fim. 

Há ainda a questão da espontaneidade, de como as pessoas respondem às faltas que existem; como elas ocupam os espaços. Cada cidade produz os seus vazios e eles são um pouco diferentes. São Paulo, por exemplo, tem muitos vazios que foram produzidos pela infraestrutura urbana. A forma como ela foi construída criou todos esses resíduos urbanos, como os espaços embaixo de viadutos. Cidade do Cabo tem muitos espaços que foram criados pelo apartheid, que criou grandes vazios que dividiam os bairros ricos dos pobres e que foram espaços em que vimos alguns projetos acontecerem. Na Cidade do México havia alguns terrenos que haviam sido destinados a construir uma escola ou um espaço comum e que ficaram vazios. Eles foram ocupados porque é uma cidade muito densa, então falta espaço. Istambul é um pouco diferente, é uma cidade mais desenhada, com espaços urbanos, como ruas e calçadas, de melhor qualidade, mas com pouco uso. Os projetos de Istambul têm mais um caráter de assistência social. Tem escola de música, centro para jovens sem casa dormirem e receberem cursos profissionalizantes, um terceiro projeto foi organizado por e para mulheres, para atender a migrantes. 

De forma geral, são projetos muito simples, organizados, que com todas as limitações criam benfeitorias e melhoram as condições de uso da cidade na escala local. São organizados com pouquíssimos recursos. Alguns temas se repetem, como agricultura urbana, imobiliário urbano, pintura e melhoria de casas e fachadas, revitalização de córregos, vegetação, muitos projetos educacionais e de cultura. Frequentemente há a presença de um ativador cultural, que é importante em todos os projetos. É alguém que organiza, coordena e que garante que o projeto se desenvolva e responda às demandas das pessoas que usam o espaço.

De fato, em todos os projetos citados no livro, há a presença de uma pessoa central, que dá vida à ideia. Qual a importância dessa presença?

Às vezes é uma pessoa, às vezes é uma instituição. O (Nilson) Garrido decidiu ele mesmo criar uma academia de boxe embaixo de um viaduto em São Paulo. Por outro lado, o Instituto Sou da Paz, que também oferece projetos nas áreas urbanas, tem um sistema de coordenação mais complexo, mas envia sempre um ativador cultural, que é uma pessoa jovem, que conversa com todo mundo, cria ou elege um representante local. Mas geralmente existe uma pessoa sim, que é uma ponte entre o projeto e a sociedade.

E quem é de fora às vezes tem a intenção de ajudar uma determinada comunidade, mas não sabe o que fazer, ou chega com soluções prontas, que não têm nada a ver com as necessidades das pessoas. Como é possível colaborar de maneira efetiva?

 Há algumas posturas diferentes nessa questão da “ajuda”. Uma delas é “quero ajudar num dia, num evento”, ir lá e servir sopa. Tudo bem, tem espaço para todo tipo de ajuda. Mas há necessidade também de engajamento, e aí também há posturas diferentes. Uma coisa que muitas comunidades criticam com frequência é alguém vir de fora com uma ideia pronta e que fala: “eu quero fazer isso”, que é a mesma coisa que a cidade faz. É o que chamamos no urbanismo de top-down planning (planejamento de cima para baixo). É uma coisa imposta de cima para baixo e é geralmente muito descuidada. Não se preocupa nada com aquilo que já vem sendo pensado, que as pessoas querem, que o espaço precisa e que impõe um tipo de intervenção que não faz sentido. A praça que a gente conhece num bairro como Ipanema, Leblon ou Jardins é muito diferente do que significa o espaço público dentro de uma favela, qualquer que ela seja. Impor esse espaço pode significar uma falha completa logo de cara.

Então, tem que ter sensibilidade para entender o que o espaço significa para eles e dar abertura para que o envolvimento aconteça. É um trabalho árduo e demorado. Dos projetos que eu visitei e conheci com mais tempo, que são os de São Paulo, percebi que demora pelo menos um ano para que a pessoa de fora seja aceita pelo grupo, comece a trabalhar com calma, que é um ritmo de aproximação e construção dos laços que é natural do ser humano. Aí sim, aos poucos as trocas vão acontecendo e a construção do espaço também.

Tenho um exemplo pessoal sobre isso. Quando eu estudava, construímos uma estrutura e as pessoas colocaram fogo no dia seguinte. Foi o melhor aprendizado possível. Por que aconteceu isso? Porque fomos lá e construímos uma coisa que nós achávamos que fazia sentido, que era necessário, que era bonito. Mas não era nada daquilo. O problema é que as cidades continuam fazendo isso, os planejadores continuam aprendendo para isso. O Edgar Pieterse, diretor do African Center for Cities fala isso na entrevista que deu para o livro, fala exatamente isso. Os estudantes deveriam aprender mais sobre essas iniciativas porque elas são verdadeiros laboratórios urbanos. A gente tem que entender como fazer, o engajamento tem que acontecer localmente.

Agora, isso não significa que o projeto que a prefeitura vai fazer tenha que demorar tanto. Ela pode se unir com as pessoas que já estão fazendo isso e trabalhar junto. Ou então, a partir de estudos como o nosso, entender a dinâmica e criar projetos semelhantes no futuro.

Você acha que esse estudo já teve um impacto nesse sentido, de as prefeituras não chegar impondo projetos?

Não sei se isso acontece por parte do poder público, mas a discussão existe. Tenho um retorno muito grande de estudantes, o que já me deixa bem feliz. Eles estão interessados em se envolver e participar. São as cabeças novas, que vão desenhar as cidades no futuro. Isso já é muito legal, pois as ideias já estão se espalhando. E se trata de ideias baseadas em práticas, e não de uma discussão apenas teórica.

Além disso hoje há, sem sombra de dúvida, uma discussão grande sobre participação nas cidades. É cada vez mais claro que as pessoas estão participando mais, no mundo inteiro. O legal disso é que as pessoas vão ocupando e modificando as cidades, e ao mesmo tempo, pelo próprio uso, mapeando onde falta o quê. Esse já é um grande impacto. O que fizemos foi estudar iniciativas mais estruturadas. 

A prefeitura de São Paulo demonstrou interesse no nosso projeto, mas não foi para a frente. Acho que faltam secretarias que lidem diretamente com isso. Quando você visita uma favela que não foi urbanizada, há uma série de grandes empreendimentos que devem ser feitos, mas deveria também haver um acompanhamento dos pequenos empreendimentos, que não têm que ser feitos só por ONGs ou associações. Adoraria ver uma secretaria, ou organização superior, que pudesse levar os recursos para esses projetos. Muitas vezes falta coisa muito simples. Às vezes para construir um móvel precisa só de madeira, de ferramentas e da diária do cara que vai cortar a madeira, não é nada de dinheiro. Uma coordenação desses processos que respeite a vontade local e não imponha as coisas vindas de cima pode ser interessante. Isso não existe, não vejo isso acontecer.

Temos que encontrar novas formas de fazer projetos e a prefeitura tem que aceitar isso. E nem sempre é a prefeitura que tem que aceitar. Em São Paulo, os espaços embaixo das redes de eletricidade é da Eletropaulo. Há outros clientes para isso.

Uma questão que aparece é a escala dessas cidades. Como esperar com que essas pequenas iniciativas promovam uma mudança efetiva na cidade?

Da escala dessas cidades é que vem a vontade de mapear os projetos. Cada vez que vou visitar um projeto eu viajo horas, pego trânsito, me desloco 70 quilômetros e chego num local que tem 20, 50 metros quadrados. E me perguntei algumas vezes se fazia sentido. Mas na hora em que você começa a mapear, você vê que são inúmeros e que acontecem em diversos campos. Se você pegar os linhões de energia em São Paulo e desenhar no espaço urbano, vê que estão por toda a cidade, é um espaço enorme. Eles já têm um grande impacto e têm potencial ainda maior, se utilizar esse espaço da forma adequada. 

Isso tem que ser regulamentado. Já é em parte. Em São Paulo, por exemplo, em 2007 saiu uma nova regulamentação para uso dos espaços embaixo de viadutos. Existem mais de 200 espaços assim, e as pessoas interessadas podem falar com a subprefeitura para ocupar. Alguns instrumentos estão aparecendo e isso é muito positivo. E acho que mais instrumentos devem ser criados para outros espaços que estejam vazios.

O que é mais interessante desse projeto é que há uma visão otimista em relação às cidades. É difícil ver essa opinião no meio do planejamento, pelo menos no Brasil.

Sou um otimista. As cidades são cheias de problemas, mas oferecem uma porção de oportunidades. Saí do Brasil para fazer o doutorado porque me incomodava a forma como a crítica era feita. Criticar para destruir é fácil. O potencial do que já está construído é enorme. Dá pra fazer. 

As conferencias do Urban Age foram criadas em 2005. Em 2006, quando organizado na Cidade do México, surgiu a ideia do prêmio. Naquela situação, Wolfgang Nowak (jurista alemão), que primeiro teve a ideia sobre a realização do premio, visitou uma favela e ficou fascinado como, em meio a todo o crime e faltas de toda ordem, havia um mercado e uma especie de escola ou centro de estudos criados pelos moradores.

O prêmio, então, começou para incentivar a sociedade civil a organizar projetos desta natureza, tornar-se ativos em seus ambientes para a criação de um bem comum e para a melhoria do espaço coletivo. 

Urban Age
As conferencias Urban Age nasceram de uma parceria entre a LSE e da Alfred Herrhausen Society, que é o fórum internacional do Deutsche Bank e que é uma organização sem fins lucrativos independente, e financiada pelo banco. 

Leia também

Últimas notícias