Mestre da música instrumental, Roberto Sion lança CD de canções ‘cantadas’

Maestro, pianista, saxofonista ‘da pesada’, Roberto Sion lança CD de inéditas, acompanhado por vozes ‘de primeira’ (©divulgação) O santista Roberto Sion é merecidamente reconhecido como um dos mais importantes maestros, […]

Maestro, pianista, saxofonista ‘da pesada’, Roberto Sion lança CD de inéditas, acompanhado por vozes ‘de primeira’ (©divulgação)

O santista Roberto Sion é merecidamente reconhecido como um dos mais importantes maestros, arranjadores, pianistas e saxofonistas brasileiros. Também não é para menos. Ele é um dos responsáveis por misturar o apuro do jazz com as tradições musicais brasileiras. É o que se percebe no ótimo CD “12 Canções Inéditas”, em que as músicas que compôs com letras de Mauricio Gusmão são interpretadas por grandes vozes, como Alaíde Costa, Dominguinhos, Filó Machado, Jane Duboc, Maurício Pereira, Tuca Fernandes e Zé Luiz Mazziotti.

A origem do álbum fica explícita na primeira página do encarte: “Manhã, encontro Maurício na vizinhança: – ‘Dois dias e terminam as inscrições para um Festival, tens umas letras prontas?’. No prazo, três canções e parceria nasciam. A seleção do Festival disse: não! Ao invés da metafórica gaveta, seguimos compondo… eufóricos! Sem hora marcada. Até ganharmos, de nosso Patrocinador, intérpretes e amigos, a graça de repartir estas doze canções inéditas com vocês”.

Essa mistura de jazz com música brasileira percebe-se numa das melhores faixas do trabalho – o choro “Longo romance”, interpretada por Zé Luiz Mazziotti e que conta com um time de feras no acompanhamento, como é o caso de Aleh Ferreira, no bandolim; João Werchco, no cavaquinho; Adalto C. de Oliveira (Tigrão), no pandeiro; José Vicente Ribeiro (Shen), na flauta; e o próprio Roberto Sion, na flauta e no piano. Mazziotti também é intérprete da jazzística “O que diz”, que conta com Sion no piano e no arrebatador sax barítono.

Igualmente apoteótica é “Quem dera”, na voz de Alaíde Costa e que traz uma introdução avassaladora tocada por Claudio Cruz e Swetlana Tershkova (violinos), Peter Pas (viola) e Wilson Sampaio (violoncelo). A intérprete retorna na densa “Labirinto”: “O labirinto dos seus olhos / Leva a um passeio entre a luz e a treva / A um passado que se alimenta / De saudade e desgosto / Pano rápido, câmera lenta / O certo e o avesso de um rosto / Ou então não leva a nada”.

“Labirinto” é a primeira das “3 gravuras ao pé da escada”. As outras duas são “Traço”, com a cantora Tuca Fernandes, o piano de Roberto Sion e a viola de Peter Pas; e “Loreta”, na interpretação delicada de Filó Machado e que parece saída da trilha de algum filme brasileiro dos anos 70 e 80: “Loreta cruzava as pernas / Com ar de melancolia / Metade neves eternas / Metade calor do dia / Não sei o que ela pensava / Loreta nunca dizia”. 

Jane Duboc interpreta a primeira faixa, a doce cantiga “Cena”, acompanhada apenas pelo piano de Roberto Sion: “Cena que sonhei ou tudo verdade / Lábios que beijei ou solidão / Eu nem sei dizer se havia céu e mar / Só no seu olhar / A sugestão de amor sem fim”. A cantora paraense retorna na potente “Valsa de Ivã e Heloísa”, que impacta com o Shakuhachi de José Vicente e o quarteto de saxofones tocados por Sion.

A segunda faixa é a espacial “Pés no chão”, na marcante interpretação de Maurício Pereira, acompanhado pela base de Juscelino e os Kubitchekers, as guitarras de Tim Bernardes e André Vac, o baixo de Guilherme D’Almeida e bateria e percussão de Gabriel Basile. Outra canção interpretada por ele é a divertida “Expresso executivo”: “Vou ligar para São Paulo / Meus interesses são tantos / O contrabando em Santos / Lavoura no interior / Vou ligar para São Paulo / Vou ligar para Miami / Desligo já, não reclame”. Essas são as duas únicas músicas em que Roberto Sion não participa como músico.

Há ainda a delicada “O que diz”, com Zé Luiz Mazziotti, que é bem jazzística; e a “Cantilena”, na voz áspera de Dominguinhos, acompanhado pelo piano de Roberto Sion e a viola caipira de Ivan Vilela. O álbum termina com o contagiante “Samba da alegria”, interpretado pelo mesmo Filó Machado, com a participação de todos os cantores presentes no álbum, que termina com a sensação de que a parceria de Roberto Sion e Mauricio Gusmão poderá render muitos outros frutos incríveis.

Roberto Sion conversou com a Rede Brasil Atual a respeito desse novo álbum. Confira:

Logo no encarte do CD, você explica que fez algumas canções com o Mauricio Gusmão para participar de um festival, que elas acabaram não entrando e vocês resolveram seguir em frente com a parceria. Como surgiu esse álbum?
O Mauricio Gusmão foi meu aluno de música e, dessa amizade, ela tinha escrito umas letras do disco do irmão dele, para o qual eu tinha feito os arranjos e tinha gostado do estilo dele. Quando surgiu essa chance do festival, estava acabando o prazo, me lembrei dele e falei: “Poxa, você não tem umas letras?”. Ele me deu três letras, eu sentei assim no piano e, em dois dias, fiz as músicas. A coisa fluiu e eu estava todo animado.

Aí não entrou no festival. Se não me engano, ele tentou no outro ano. Não lembro direito. De qualquer forma, quando a gente se encontrava de vez em quando, ele me trazia umas letras. Nunca sentamos para trabalhar juntos. Ou eu mandava músicas e ele botava letra. Ou ele mandava as letras e eu botava música. E sempre deu certo (risos). Isso é meio um milagre. E eu gostei da parceria também, porque fizemos as coisas com calma, o que nem sempre é possível de se fazer. 

Eu aproveitei tudo que a gente tinha e as ideias iam surgindo, cada uma com uma tema. Então ele fez três canções para os quadros da casa dele, que virou “3 gravuras ao pé da escada”, que virou uma sessão dentro do disco. Então tem a coisa de trabalhar sem parar e ganhar dinheiro a qualquer custo, o realismo fantástico na história do avião (“Pés no chão”), o romance, a natureza (através do Dominguinhos e da cantinela nordestina), do sítio de Ivan e Heloísa.

E a “Cena”, que abre o disco, é uma música incidental que eu escrevi para uma peça do Gianfrancesco Guarnieri, quando a Orquestra Tom Jobim, e nos convidaram logo. Fomos tocar com os profissionais no fosso do Teatro Sérgio Cardoso (em São Paulo). Precisava de uma música para uma cena muito bonita do tempo do Getúlio Vargas, em frente ao cinema da Cinelândia, no Rio, onde o casal se encontra. Assim nasceu a música. E eu ia dando umas dicas para ele do caminho, como a “Cantilena” é Guimarães Rosa e aí ele ia focando na canção.

Em “Expresso executivo”, eu completei da metade em diante a letra, mas dei o crédito todo para ele, porque começou. Assim foram nascendo as canções até que, depois de cinco ou seis anos, a gente resolveu inscrever, exatamente como explica no CD, para não deixar na gaveta, no projeto da Petrobrás. E me sinto lisonjeado, porque, se não me engano, havia 600 concorrentes e foram escolhidos 10. Então é uma vitória.

As músicas também chamam atenção pela variedade. Tem valsa, chorinho, muitas coisas jazzísticas. Como foi essa criação?
Eu acho que a parte musical desse CD de canções reúne o meu respeito à música popular brasileira e à canção de um modo geral, desde Schubert, da música erudita que estudei desde criança, das modinhas, das serestas, do choro instrumental, que eu vivi em Santos, e do jazz que toquei lá.

E você vai misturando todas as influências e todo o trabalho de pesquisa que eu fiz sobre a linguagem musical. Então os arranjos não são simplesmente formados pelo acompanhamento das cordas, por exemplo, com notas paradas. Não. Elas interagem como se fossem um quarteto, uma peça erudita mesmo. Mas sem pretensão alguma. É que a gente vai sofisticando a escrita, graças ao estudo e à inspiração que a gente tem.

Então tem o trabalho da composição. Eu tenho, graças a Deus, uma facilidade para olhar letra e sentir a música dentro dela. É uma coisa que eu aprendi com Vinicius (de Moraes). Pelo amor de Deus, não me comparo com ele. Mas é um jeito de deixar meio coloquial assim. A própria letra te conta a linha melódica.

Aí tem todo um trabalho harmônico de tensões, relaxamentos e destinos de cada composição. Por exemplo, “Expresso executivo” tem uns acordes mais tropicalistas, algo mais pop. Poderia até fazer jazz, mas eu senti uma coisa meio teatral, de prosa. Já em “Cena” há uma série de acordes invertidos, do Romantismo.

Como foi a seleção dos intérpretes?
De todas essas pessoas que convidei, sempre adorei o trabalho como intérpretes e amigos, porque é o pessoal da minha geração e que eu conheço há mais de 30 anos. Inclusive, o Mauricio Pereira foi meu aluno de saxofone por vinte ou trinta anos. E eu tinha admiração do trabalho da Tuca (Fernandes) com o Arrigo Barnabé.

Só fiquei com dúvida de quem iria cantar “Quem Dera” e “Cena”. Eu acabei dando a “Cena” para a Jane, mas a Alaíde também gostaria de ter cantado. Aí ela cantou outras duas músicas. Então pelo estilo da letra e da música, eu fiquei imaginando.

O Filó (Machado) é um super suingueiro, como a gente chama. Ele precisava cantar mais uma música. Então ele canta um dos quadros, mas principalmente o “Samba da Alegria”, que tinha mais de vinte anos e eu dei para o Mauricio botar a letra. Ele pegou exatamente o espírito e botou uma letra que tinha tudo a ver com samba. Mas havia surgido como música instrumental, que foi gravada no meu disco “Terra Natal”, dos anos 90. É interessante a composição não ser datada. Então era inédita como canção.

Você falou bastante das músicas interpretadas pelo Mauricio Pereira, mas, curiosamente, são as únicas duas faixas em que não aparece como músico, “Expresso executivo” e “Pés no chão”.
Essa foi uma escolha estética e de produção. O Mauricio é um cantor pop sofisticado e eu não toquei, porque falei: “Toma as composições, junte com o grupo do seu filho e trabalhe”. Eu não dei um pitaco em nada. Só entreguei a música e a letra para eles. É legal, porque aí vem um lado completamente diferente. É outro universo.

Você pensa em juntar essa turma toda e fazer shows?
Eu pretendo sim. Por obrigação do contrato, a gente teve que fazer um lançamento e, na quarta-feira (31), consegui juntar todo mundo no Museu da Casa Brasileira. Agora pretendo enviar para o Sesc, para talvez em janeiro, para não perder a motivação, para fazer um novo lançamento dessas canções. É muito lindo o show, porque cada um canta muito bem e forma-se um todo também. Eu pretendo oferecer principalmente para o Sesc Pompéia, que tem o jeitão do CD.

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