Planeta vive sem uso regulamentado da água

Não há convenção internacional que regulamente consumo inteligente e sustentável. Brasil, exportador de soja e de etanol, perde recursos hídricos de maneira inconsciente

Sem regular uso da água, consumo e contaminação podem levar à sua extinção, com consequências drásticas (Foto: Jorge Araújo/Folhapress)

São Paulo – Entre tantos eventos em prol do meio ambiente e do desenvolvimento ecologicamente correto, um assunto importante fica de fora. Segundo o geógrafo e professor Wagner Ribeiro da Costa, do Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental (PROCAM – USP), vivemos um momento crucial e preocupante: não temos uma convenção internacional sobre a água. “Tem de regulamentar o uso para que tensões [entre países] não se transformem em conflitos”, afirma. 

De acordo com o relatório “O Estado do Mundo 2010 – Transformando Culturas Do Consumismo à Sustentabilidade”, do The World Watch Institute, nos últimos 50 anos a população mundial aumentou 2,2 vezes. Por sua vez, o consumo de água subiu seis vezes. Isso não quer dizer que as pessoas estão bebendo mais, segundo Ribeiro da Costa.  

O especialista justifica esse aumento devido ao estilo de vida contemporâneo, o crescimento de renda e a urbanização. Ele aponta a inexistência de um acordo mundial fechado que regule o uso correto. “A situação ambiental não é mais secundária. O problema não está no crescimento populacional ou na pobreza, e sim no consumo exagerado”, diz. 

Na América do Sul, existe o plano “Gerenciamento Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos Transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas”, mais conhecido como GEF Amazonas. O projeto é financiando pelo Global Environment Facility (GEF) e é composto por oito países: Bolívia, Brasil (a cargo da Agência Nacional de Águas – ANA), Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. A iniciativa tem como objetivo fortalecer, planejar e coordenar atividades de proteção do solo e dos recursos hídricos do rio Amazonas, visando os impactos causados pelas alterações climáticas. 

Durante a Conferência da ONU para o Desenvolvimento Sustentável, a Eco 92, realizada há 20 anos, foi estabelecida a Agenda 21. O artigo 18 do documento prega a “Proteção de qualidade e do abastecimento dos recursos hídricos: aplicação de critérios integrados no desenvolvimento, manejo e uso dos recursos hídricos”.  O relatório indicou que as nações refletissem sobre o tema, mas não houve avanço em torno de um programa específico. 

Em seu livro ‘Geografia Política da Água’, que trata do direito humano a esse recurso, Ribeiro da Costa aponta que há uma luta enorme para que a regulamentação ganhe aplicação concreta. “Havia expectativa que a questão fosse incorporada a Rio+20, mas não foi. Isso me preocupa”, revela o geógrafo. 

Este ano ocorreu outro evento mundial a fim de estabelecer princípios para o uso sustentável da água. O VI Fórum Mundial da Água em Marselha, França, onde foram discutidas e definidas 1.400 questões ligadas ao tema, essas sim levadas à Rio+20, na qual se espera acordo, entre outras coisas, em torno da regulação do uso dos oceanos.

Exportando água

O Brasil exporta água, mas não da forma tradicional em garrafas. O país é o segundo maior exportador de soja do mundo e o primeiro em produção de etanol à base de cana de açúcar. Quando cruzam as fronteiras rumo ao exterior esses produtos levam consigo parte da água do país. Conhecida como “água virtual”, ela é utilizada na produção dessas mercadorias.  O uso de milhares de litros nesse processo e a degradação ambiental ocasionada pelo cultivo dessas matérias-primas não são relacionados ao preço final do produto. “Estamos ‘vendendo’ água para fora enquanto falta aqui. Como em São Paulo, que já traz de fora”, alerta Costa Ribeiro. 

O debate sobre a precificação da água utilizada e da degradação feita para produção já ocorre nos congressos sobre bacias hidrográficas, como o Comitê das Contas Econômicas da Água. Mas ainda não há uma difusão exata de como essa cobrança será feita, de quem e como a conta será paga. “Cada vez que o Brasil exporta alguma carga à China, está exportando água. Estamos transferindo água no planeta o tempo todo. Então, a água amazônica está sendo consumida lá por um animal, que vai servir de carne para um chinês”, explica o coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (INCT do Bioetanol), Marcos Buckeridge. De acordo com Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (ANEC), o país fechou o ano de 2011 com a China como principal importadora de soja, com 17.530.899 toneladas de grãos – isso significa a exportação de 45 bilhões de litros de água virtual.

Segundo dados da UNESCO, lançados esse ano no relatório Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, a agricultura é responsável por 70% do uso da água doce. A expectativa para o aumento da população global para os próximos 40 anos é de dois a três bilhões de pessoas e o aumento da demanda por comida será de 70% até 2050. Ainda de acordo com o documento, o desafio para os próximos anos não será produzir 70% a mais de comida, mas fazer com que essa quantidade chegue às mesas das pessoas. O aumento de água usada para a agricultura até essa mesma data é previsto em 20%.

A pesquisa mostra também que 64% dos países já vêm desenvolvendo planos de manejo integrado de recursos hídricos, como determinado no Plano de Implementação de Joanesburgo. Mas apenas 34% deles relatam estar em desenvolvimento avançado, porém o ritmo diminuiu em países com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo e médio. 

Alguns dados sobre o uso de “água virtual”
1 kg de arroz = 3.500 
1 kg de carne bovina = 15.000
1 xícara de café = 140  

Para produção das informações foram utilizados os dados de exportação de cada produto, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) e do volume de água virtual contida em cada produto a partir dos dados da Food and Agriculture Organization (FAO).

Projetos governamentais

Apesar de não haver uma norma mundial para o uso e venda correta da água, o Brasil adotou uma regra específica em 1997, para os recursos hídricos, a Lei 9.433. A partir disso foi criada a Agência Nacional da Água (ANA), que segue os critérios da norma em seus projetos. O órgão estabelece a organização, o uso e a regulamentação do bem. O professor Costa Ribeiro afirma que até hoje a lei não é usada em larga escala no país. 

As terras tupiniquins apresentam 11,7% da água doce do mundo, sendo 70% localizada na Amazônia. “12% do que chega todos os anos aos oceanos vem da Amazônia. Temos pouca água, é basicamente a dessa região”, diz.

Antecedendo a conferência Rio+20, o governo brasileiro lançou a “Conjuntura de Recursos Hídricos do Brasil – 2012”. O documento traz um panorama da atual situação das águas e visa a ajudar estudos para a preservação do bem. “No meu ponto de vista, no século XXI devemos fazer um esforço para recuperar os estragos do século XX”, conclui Costa Ribeiro. 

Olívia Freitas é estudante do curso de jornalismo “Descobrir a Amazônia, Descobrir-se Repórter”, do Projeto Repórter do Futuro, uma parceria entre a Oboré Projetos Especiais de Comunicação e Artes, o Instituto de Estudos Avançados da USP e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).