Conversa de Aziz Ab’ Saber com um menino chamado Brasil

Ele diz sonhar com o dia em que os administradores públicos sentarão com cientistas antes de executar determinado projeto, e entender os impactos de seus atos amanhã, daqui a vinte, cem, milhares de anos

Silva Júnior/Folhapress

O geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber teve grande importância na evolução científica brasileira

Este texto foi escrito por Paulo Donizetti de Souza em 2002 para a Revista Fórum. Em virtude da morte do professor Aziz Ab’Saber neste 16 de março de 2012, aos 87 anos, convidamos à leitura sobre a história de um dos mais importantes intelectuais do país, um dos idealizadores das primeiras Caravanas da Cidadania, de Lula pelo Brasil, acompanhado de intelectuais e militantes.

Muito curioso, o menino chamado Brasil quer tanto aprender sobre a vida e sobre si mesmo que resolve engatar uma conversa com o professor Aziz Nacib Ab’Saber, de quem muito já ouvira falar. Afinal, o mestre, filho do libanês Nacib e da brasileira Juventina, está para completar, no próximo 24 de outubro, 78 anos de uma rica história de vida. Uma vida estudando o guri de nome Brasil.

Para ter uma idéia, só de universidade,Aziz já tem mais de cinqüenta anos e publicou uns 320 trabalhos – entre estudos, documentos, teses, análises, projetos, livros. É membro da Academia Brasileira de Ciências, foi diretor do Instituto de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC, 93/95), tornou-se professor emérito da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde já foi reconhecido como geógrafo de maior relevância nacional. Até hoje freqüenta como se fosse sua segunda casa (ou primeira?) o Instituto de Estudos Avançados da mesma USP e continua ganhando prêmios, como um da Unesco, por sua contribuição à ciência e ao meio ambiente, e uma condecoração do presidente da República, de quem é crítico, principalmente por entender que ele não cuida bem do menino Brasil.

Falando no menino, ele pergunta ao mestre o que vai ser quando crescer. Na sua imaginação, as pessoas já sabem o que vai acontecer com elas quando decidem seu caminho. “Que nada”, desfaz o professor, ao revelar que quando se é jovem não se sabe direito no que as escolhas vão dar. E confessa que nunca imaginou ser geógrafo, mas que escolheu História e Geografia, ainda nos tempos de ginásio, em Taubaté, “por eliminação”, relata, colocando a mão sobre os olhos, meio que os protegendo da luz, meio que se esforçando para puxar algo da memória. E traz à conversa uma excursão organizada pelo seu Nacib a Ubatuba, quando conheceu o mar e, ainda aos 6 anos, memorizaria os efeitos paisagísticos da viagem que contrastaria anos mais tarde com sua chegada a São Paulo, cidade bafejada pelo frio e que instigaria ainda mais a sua percepção entre as diferenças climáticas que atiçavam sua curiosidade.

Um dia achou um mestre, não de geografia, mas de história, de nome Hilton Federici, cujos meios de dividir conhecimento batiam com o seu. Ao terminar o ciclo (e naquele tempo o ciclo eram cinco anos de ginasial que se mesclavam com colegial), Aziz ficou curioso para saber como entraria na faculdade que havia formado o Hilton, o professor que o despertara para a dualidade entre a história e o espaço físico e ecológico em que ela transcorre como uma aula que marcou sua vida. Uma excursão de campo, para a qual os alunos foram antecipadamente avisados a ir com roupa apropriada, que passaria por Itu, Salto, Campinas, Jundiaí e São Paulo.

Depois de verificar a trajetória de Hilton Federici, e de desembarcar na USP, Aziz logo descobriria que se daria bem numa disciplina então híbrida – geografia e história, embora ainda as considerasse ciências demasiadamente grandes para quem acabara de sair do ginásio. Estava dado o passo que transformaria o pequeno curioso nascido em São Luiz do Paraitinga, no Vale do Paraíba, numa das figuras mais emblemáticas não apenas da USP, nas palavras de Octávio Ianni, mas de toda a universidade brasileira, por integrar uma estirpe de intelectuais, contemporânea a Antônio Cândido e Florestan Fernandes, que se celebrizaria pela primazia do pensamento humanista a qualquer área de conhecimento do mundo acadêmico.

Não faltou paciência a Ab’Saber quando disse a Lula, ainda antes da eleição de 1989, que o principal líder da esquerda do país precisava visitar Garanhuns. “Lula, você precisa passear na sua terra, ver como ela é, como está sua gente”. Foi apenas a primeira da série, verdadeiro doutorado em geografia humanista, que se tornariam as Caravanas da Cidadania

Tímido, Aziz dava-se melhor nas aulas de história que nos estudos de geografia. Falava pouco com os colegas de outras áreas. Acabou estreitando mais o diálogo com os professores de geografia humana Plínio Airosa e o francês Pierre Mombeg. Antônio Cândido de Mello e Souza se tornaria uma referência. “Eu o encontrava em grandes conversas com o professor Lourival Gomes Machado, mas não tinha coragem de falar com colegas em estágio mais avançado que eu”, recorda. “Entrei em 1940 e alguns deles já estavam saindo.”

Mas o filho do seu Nacib acabou encontrando um colega de turma que se tornaria o grande parceiro para dividir a velha carteira de duplo acento: Florestan Fernandes. Naquele tempo, ensina o mestre, alguns cursos eram dados em conjunto entre as turmas de geografia e ciências sociais. Nas aulas de antropologia de Emílio Willems – um dos precursores dos estudos de contatos étnicos e culturais da região Sul – Aziz boiava um pouco, enquanto Florestan acompanhava com facilidade. “Esse colega extraordinário me influenciou mais que muitos professores. Além de morarmos no mesmo bairro e dividirmos a mesma carteira tomávamos juntos o mesmo bonde, da Praça da Sé até a Quarta Parada.”

Com o mesmo gesto com que parece passar a maior parte do tempo e das conversas que tem com o menino – os olhos cerrados, olhando para dentro da memória – o mestre Aziz busca o nome de Haroldo de Azevedo, a sua capacidade didática e “como ele reparou em mim”, incentivando no modo de descobrir as coisas. E já que não quer ser injusto na conversa com o menino, o sábio aproveita a memória “aquecida”, sempre com os olhos cerrados e protegidos pela palma da mão direita, para recuperar alguns outros nomes importantes em sua busca incessante do conhecimento. 

Os franceses Pierre Gourou (geógrafo tropicalista, “suas considerações sobre o mundo tropical aguçaram meu espírito crítico quanto à visão européia a respeito dos trópicos”); Roger Dion (“um erudito, andava de bonde pela cidade toda e fazia observações fundamentais para expandir meu interesse pela várzea do Tietê e pela metrópole que então surgia”); Louis Papy (“trouxe a influência da humildade à pesquisa geográfica, cuidadoso, escreveu À Margem do Império do Café, sobre o litoral e, meu Deus!, ia muito mais longe que eu nas incursões de campo”); Fernand Brodell (“o maior, intelectual da geografia que deixou suas marcas na história, na antropologia, nas ciências sociais”); e o geógrafo paleontólogo da Universidade de Cincinatti, Kenneth Caster (“que estudava e ensinava geologia histórica desde que o planeta surgiu da rebentação de uma galáxia, alguns bilhões de anos atrás, com suas aulas dando sempre uma idéia de seqüência, que eu admirava muito, sempre conjugando as coisas do mundo físico, incluindo aí o mundo dos vivos”).

Enfim, o professor olha de novo para o menino e, depois dessa volta toda, observa que se tivesse que dizer o que mais o marcou em sua formação cultural, provavelmente diria que foi o fato de ter entrado muito precocemente no mundo da pesquisa (teria sido numa excursão de São Luiz do Paraitinga a Ubatuba?).

Volta a fechar os olhos e relembra o primeiro trabalho que concluiu, no final do curso de especialização, ainda nos anos 40, com repercussão internacional, Regiões de Circundesnudação Pós-etácica no Planalto Brasileiro. Como parte dos professores achava que o jovem Aziz viajava muito (“eles não viam que eu era um estudioso!”), o aluno não apresentou esse trabalho como conclusão do curso. Publicou-o no número 1 da revista Boletim Geográfico e, segundo relatou-lhe o professor Haroldo, acabou encontrando admiradores no México.

Aziz faz questão de mostrar para o menino que o aproveitamento da imagem, que começa a lhe faltar aos olhos, foi sempre peça-chave de suas pesquisas, de seus trabalhos, de suas aulas. Não há região que tenha estudado ou visitado que não tenha sido fotografada por ele mesmo. Mas o professor não esquece de dizer ao menino que vida de cientista não é só estudar, aprender e ensinar.

De vez em quando, uma pontinha de indignação faz parte. “Recebi recentemente um atlas da arenização do Rio Grande do Sul, e o único trabalho que não recebe crédito é o meu, que havia feito quatro anos antes, A Revolta dos Ventos, que explica o quanto as areias das campanhas gaúchas têm a ver com o mau uso do solo. Ou uma pontinha de mágoa. “No 1º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, participei de eventos a convite de uma ONG internacional; no 2º, ninguém da organização me chamou de novo”.

O professor Aziz faz questão de mostrar para o menino que o aproveitamento da imagem, que começa a lhe faltar aos olhos, foi sempre peça-chave de suas pesquisas, de seus trabalhos, de suas aulas. Não há região que tenha estudado ou visitado que não tenha sido fotografada por ele mesmo. Quando possível, recorre às fotos feitas por satélite. Uma história inteira de suas pesquisas pelo Brasil adentro esteve exposta na Bienal do Livro, em São Paulo. Não se sabia se era exposição fotográfica ou aula de geografia histórica. 

Seu trabalho mais recente, inclusive, tem como base as fotos que contam tudo que se é possível saber a respeito dos 8 mil quilômetros de litoral brasileiro, do Oiapoque ao Chuí. Ou melhor, não são bem as fotos que contam tudo. Litoral Brasileiro/Brazilian Coast tem, é verdade, 193 fotografias de 48 fotógrafos renomados e outras sessenta imagens captadas por satélite a 850 quilômetros de altitude. Mas antes de lhe entregarem as fotos, que atrasaram quatro meses, o autor já havia escrito tudo o que sabia a respeito das maravilhas ecológicas e geográficas da costa brasileira, suas praias, mangues, encostas, ilhas, bocas de rios, restingas, enseadas, fauna e flora, e como se formaram ao longo dos últimos milhares de anos.

A impaciência do professor com a demora (o atraso das fotos obrigou-o a fazer uma série de ajustes no texto e nas legendas) só não foi maior, revela ele ao menino, porque o trabalho permitiu em parte o custeio da permanência do filho Alexandre em Washington para uma especialização no Centro de Patologia Pulmonar da capital norte-americana.

Também não faltou paciência a Aziz Nacib Ab’Saber quando disse a Luiz Inácio Lula da Silva, ainda antes da eleição de 1989, que o principal líder da esquerda do país precisava visitar Garanhuns. “Lula, você precisa passear na sua terra, ver como ela é, como está sua gente”, ensinou. O petista, temendo ser rotulado por praticar algo parecido com demagogia, adiou a sugestão. Seis meses depois, tocou o telefone da casa do professor: “Vou para Garanhuns na semana que vem e quero que o senhor venha comigo”. O mestre desmarcou todos os compromissos – assistência a alunos, palestras, conferências, as coisas que mais gosta, até hoje, de fazer na vida – e o acompanhou. Foi apenas a primeira de uma série de viagens, verdadeiro doutorado em geografia humanista, que se tornariam as Caravanas da Cidadania.

Ali, o mestre Aziz já sabia que a ciência básica sem a ciência aplicada não é nada. Que as questões ambientais são muito mais sérias que o mundo físico, ecológico e cultural. Que estudar e encontrar soluções para o social – como vivem as pessoas, inclusive as que não têm trabalho nem comida para dar aos filhos, nem lazer, nem água para o banho, nem esperança – é nada mais do que defender o pleno equilíbrio ambiental.

Aziz sonha hoje encontrar alguém que abrace a idéia dos Clubes Comunitários que podem melhorar esse equilíbrio nas periferias miseráveis de São Paulo, que visita sistematicamente já sem as matérias de geografia na cabeça, apenas o saber humanista. Sonha com o dia em que os administradores públicos sentarão à mesa com cientistas de todas as áreas para tentarem, antes de executar determinada obra ou projeto, ou de se omitir, entender os impactos ambientais (em todos os sentidos) de seus atos amanhã, daqui a cinco, vinte, cem, milhares de anos.

O mestre se irrita ao lembrar de um debate sobre Amazônia, anos atrás, em que “um preposto” do governo federal o tirou do sério ao revelar o caráter desumano do pensamento dos atuais detentores do poder, segundo o qual investir em projetos de auto-sustentabilidade envolvendo as populações locais envolveria muito trabalho e dinheiro para pouco retorno. “Talvez fosse mesmo pouco retorno para quem pensa com a cabeça de burocrata, mas é questão de sobrevivência para quem está em sua terra.” A tensão do debate agravou-lhe o distúrbio ocular que hoje lhe restringe quase metade da visão e que o torna dependente do amparo de familiares e amigos para ler e locomover-se em suas peripécias de conhecimento.

Quase metade da visão… O mestre continua a cerrar os olhos, a protegê-los com a palma da mão direita, enquanto o menino chamado Brasil imagina: como ele encasquetou comigo! Haverá alguém que me enxergue melhor que o professor Aziz Nacib Ab’Saber?