Chuvas, ajuda divina e a responsabilidade humana

Águas invadem casas em Rio do Sul, cidade que declarou estado de calamidade pública por conta das chuvas (Foto: Agência RBS/Folhapress) Os problemas ocasionados pela chuva continuam em Santa Catarina. […]

Águas invadem casas em Rio do Sul, cidade que declarou estado de calamidade pública por conta das chuvas (Foto: Agência RBS/Folhapress)

Os problemas ocasionados pela chuva continuam em Santa Catarina. Desde o dia 7 de setembro, 977 mil pessoas sofreram algum transtorno. Dessas, 177 mil foram abrigadas a abandonar suas casas. A maior parte delas teve sorte suficiente para conseguir abrigo em casas de parentes e amigos. Aqueles que não têm essa possibilidade (são cerca de 15 mil) dependem de abrigos oferecidos pelas 95 cidades atingidas. O número de desabrigados já é maior que o de 2008, ano de uma das maiores enchentes que já atingiram a região.

Há muito o que falar sobre as enchentes na região. Até agora, o melhor post que li foi o do Leonardo Sakamoto. Ele levanta diversas questões importantes sobre o assunto. Aqui, vou ressaltar dois pontos que considero especialmente importantes.

O primeiro é o léxico usado quando as chuvas torrenciais trazem desgraça para as cidades. Governantes, mídia e até os atingidos falam em “desastre natural”, “força da natureza” e pedem ajuda a Deus para que os problemas acabem ,ou pelo menos não piorem. Para além do fato de que apelar para Deus deveria ser um expediente privado e pessoal e não política de governo, está a impressão de que somos todos vítimas de um fenômeno fora da média e, por isso, não há nada o que fazer para evitar esse tipo de ocorrência. Ora, isso é evidentemente uma falácia e um desrespeito ao cidadão e só mostra que estamos servidos de governantes inaptos para o exercício de seus cargos, ou pior, mal-intencionados. 

Para começar, não existe “desastre natural” em uma aglomeração urbana. Na verdade, as altas taxas de urbanização do Brasil fazem com que virtualmente qualquer fenômeno climático sofra alguma intervenção humana. As grandes cheias e grandes secas que nos atingem são efeitos de fenômenos naturais, sim, mas pesadamente influenciados pela ação humana.

Portanto, as enchentes não são fruto da vontade divina, mas da incompetência humana. O uso das áreas de cheias dos rios e de encostas para construção, isso sim, é o que pode ser chamado de tragédia, não a ocorrência das chuvas. É evidente que as chuvas estão mais fortes atualmente. Apesar de muita gente ainda não acreditar, as mudanças climáticas existem e já nos afetam. Não precisamos esperar o degelo dos polos para sentir as consequências. As tempestades estão ficando, de fato, mais violentas, mas, friso mais uma vez, Deus não tem nada a ver com isso. 

O que impressiona é que todas essas informações são de domínio público. Mesmo assim, não há movimento sério para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Ressalte-se que esse tipo de leniência não está circunscrito ao Vale do Itajaí. Em São Paulo, as obras contra enchentes estão paradas. No Rio de Janeiro, os únicos moradores retirados (à força) de áreas de risco são aqueles que estão no caminho das obras para a Copa do Mundo e da Olimpíada. Se a realidade nas duas cidades mais ricas do país é essa, nas cidades menores a situação não é melhor.

Desigualdade ambiental

O segundo aspecto dessa questão é aquilo que chamo de “desigualdade ambiental”, uma tradução livre do termo “environmental justice”. O movimento pela justiça ambiental começou nos Estados Unidos nos anos 80, com movimentos para protestar contra a instalação de lixões em vizinhanças negras e latinas. Esses bairros recebem proporcionalmente muito mais instalações perigosas do que comunidades de maioria branca. Desde então, a definição do que se entende por condições ambientais aumentou. Não apenas lixões, mas todo o tipo de desigualdade em relação a condições ambientais que atingem determinada região.

Dessa forma, é possível chamar de desigualdade ambiental a diferença que existe entre comunidades ricas e carentes em relação aos efeitos das chuvas. Favelas e bairros pobres quase sempre inundam (ou desabam) antes e de forma mais violenta do que áreas ricas. Mesmo quando as áreas mais afluentes são atingidas, os efeitos nos moradores são mínimos, já que eles têm mais informação e meios para fugir mais cedo, além de recursos financeiros para modificar a própria casa para evitar grandes consequências nas construções.

Parece natural que seja assim, já que estamos acostumados com essa dinâmica social, onde os mais ricos se safam e os mais pobres sofrem. Realmente, é assim que sempre acontece, mas isso não muda o fato de que é injusto que alguns sejam mais atingidos que outros por um mesmo fenômeno. Além disso, esse fato tira ainda mais das enchentes e deslizamentos seu aspecto de ‘desastre natural”. Se só a força da natureza agisse, os atingidos não seriam tão claramente divididos entre ricos e pobres.

E o que o poder público tem feito sobre o assunto? Na maioria dos casos, das duas uma: ou fechou os olhos para o problema ou criminalizou os moradores das áreas de risco, que acabam sendo expulsos sem direito à indenização – no máximo com bolsa aluguel ou um cheque despejo – para, em seguida, voltarem a se instalar em uma área de risco, dessa vez um pouco mais longe do centro da cidade.

Esses estilos de intervenção pública já mostraram que não levam a nada. Investir em moradia decente e em um ambiente digno para todos não é esmola, e sim uma questão de justiça. Como se não bastasse, ajuda a economizar dinheiro público, que flui sem controle em casos de tragédias como essa.

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