Bem-viver e a impossibilidade do capitalismo

Debatedores apontam que é preciso superar cultura de que bem-estar significa prosperidade financeira e destacam necessidade de respeitar particularidades de cada povo

O Bem-viver foi o foco de um dos debates que compõem o seminário principal do Fórum Social Mundial em Porto Alegre. A discussão vem na esteira da contestação do atual modelo de desenvolvimento feita nos dias anteriores e na constatação de que a separação de social, política e ambiental foi um equívoco.

O evento, que lotou o auditório da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul na quarta-feira (27), novamente falou da crise civilizatória e dos movimentos que podem resultar disso. É consenso entre os debatedores que o Bem Viver não resulta da riqueza ou da aquisição de bens materiais.

Marco Deriu, sociólogo italiano e professor do Departamento de Ciência Social e Política da Universidade de Parma, considera que a riqueza deveria ser vista como a soma de fatores materiais, sociais, ecológicos e políticos. Ele lembrou que um elevado Produto Interno Bruto (PIB) não garante a felicidade de ninguém e que isso é alcançado se as pessoas podem viver com dignidade e a possibilidade de expressarem seus desejos e suas diferenças.

O sociólogo entende que não haverá Bem-viver para os países do Sul enquanto as nações ricas mantiverem seus atuais padrões de consumo. “O desenvolvimento sustentável é um conceito que não nos permite ver que precisamos de mudanças radicais. Não é nada mais que uma tinturinha verde”, assinalou.

Deriu considera que o mundo acumulou um débito ecológico que jamais poderá ser quitado. Representando a Confederação dos Povos Quéchua do Equador, Segundo Churuchumbi não manifestou qualquer dúvida sobre isso. Os chamados povos originários da América, em especial os andinos, nutriram desde muito antes da chegada de espanhóis a certeza de que o respeito à Mãe Terra, ou Pachamama, era fundamental para a própria sobrevivência humana.

Por isso, os conhecimentos tradicionais são cada vez mais valorizados na busca de alternativas de modelos civilizatórios. “Respeitar Pachamama significa a não-contaminação da água, do ar, de nosso solo, nossa casa, nossa vida. Não ao saqueio insustentável dos recursos naturais. Se seguirmos no atual modelo, a vida vai desaparecer desse planeta”, afirmou.

Foi com pesar que Churuchumbi reforçou a mensagem de que o governo do Equador não tem respeitado a Mãe Terra. Projetos petrolíferos e mineiros que mexem no subsolo, nas terras e na saúde dos povos amazônicos continuam em execução, apesar de a Constituição formulada pelo governo Rafael Correa afirmar o respeito aos indígenas.

“Correa aparentou ser um presidente progressista, a favor dos pobres, dos povos indígenas, mas foi outro dos governos neoliberais, privatizador, extrativista. Fomos traídos”, constatou.

Queda do sistema

Mais otimista foi o relato de Zraih Abder Kadel, professor e dirigente do Fórum das Alternativas, do Marrocos. Ele pensa que alguns setores conseguiram resistir aos avanços capitalistas e que uma primeira fase das lutas passou. “Agora, trabalhamos com alternativas como o Bem Viver, que afronta os capitalistas e os preceitos de que se deve viver por viver”, prevê, sobre a próxima etapa. Kadel lembra que o Bem Viver consiste também em respeitar as especificidades, como as dos povos muçulmanos, que certamente não verão no consumo de álcool um caminho para o bem estar.

A mesma relativização guiou a fala de Mercia Andrews, ativista sul-africana e diretora do Trust for Community Outreach and Education. Ela citou uma pesquisa que conduziu recentemente em uma das províncias de seu país, que têm um dos setores rurais mais ricos do planeta. Durante o levantamento, a equipe constatou que os trabalhadores eram explorados e viviam em péssimas condições, além de sofrerem com uma enorme concentração fundiária.

A maioria das pessoas acreditava que, para ter uma boa vida, precisava de uma pequena porção de terra, de no máximo cinco hectares, com a possibilidade de plantio de subsistência e um pequeno excedente para conseguir negociar e comprar outros bens básicos. Escolas mais próximas de casa e redução dos níveis de alcoolismo eram outros dos sonhos locais.

Por isso, Mercia Andrews acredita que as pessoas precisam se dar conta de que o Bem Viver não é simplesmente preencher os requisitos das “armadilhas econômicas”, como ela chama os conceitos de prosperidade financeira. “A base da natureza estrutural capitalista é o grande obstáculo para chegar ao Bem Viver, mesmo com demandas tão simples como as daquela província”, afirma.