Desigualdade

Negligenciar crise climática agrava violação dos direitos humanos e injustiças sociais

Relatório alerta que mudanças climáticas aprofundam desigualdades estruturais ao atingir, principalmente, populações em situação de vulnerabilidade

Eloi Correa/GovBa
Eloi Correa/GovBa
Área de risco em Salvador, Bahia. Os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por mais da metade das emissões de carbono, enquanto os 50% mais pobres, por apenas 7%. Mas são estes últimos os grandes impactados pelas consequências

Greenpeace Brasil – A crise do clima é uma crise de direitos humanos de proporções sem precedentes. A partir dessa máxima, o relatório Parem de Queimar Nossos Direitos, lançado recentemente pela Anistia Internacional, mostra como as consequências das mudanças climáticas são sentidas de forma desproporcional por grupos sociais que já sofrem com a violação de direitos fundamentais.

Os impactos do superaquecimento do planeta, impulsionado principalmente pela ação humana, conforme atestou o último relatório do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, nunca estiveram tão evidentes. Somente em 2021, registramos ondas de calor extremos, incêndios florestais, tempestades, enchentes e secas severas em diferentes países do mundo e que causaram centenas de mortes.

Mas, ainda que as alterações do clima sejam um problema global, as populações em situação de vulnerabilidade foram, são e serão as mais atingidas pelos eventos extremos. “A mudança do regime de chuva faz chover em todo lugar, mas para quem mora, por exemplo, numa favela e a encosta desce, é diferente de quem mora numa encosta de uma ilha grega porque ela não vai descer. As condições de habitar aquilo ali são diferentes. Os rios secam, vai faltar água para todo mundo, mas para a população ribeirinha vai ser muito mais difícil, pois todo o seu modo de vida, sua história, sua alimentação, está ali”, exemplifica Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil.

Em entrevista ao Greenpeace Brasil, a porta-voz da organização ressalta a necessidade de reparação pelas perdas e danos dos povos indígenas, mulheres, crianças, idosos, migrantes e refugiados. Grupos que, entre outros, são os que menos contribuíram para o agravamento da crise climática.

Dados apresentados pelo relatório da Anistia comprovam este fato: de 1990 a 2015, o 1% mais rico da população mundial foi responsável por emitir mais que o dobro do dióxido de carbono (CO2) que a metade mais pobre do mundo em conjunto. No mesmo período, os 10% mais ricos da população mundial foram responsáveis por mais da metade das emissões de carbono, enquanto os 50% mais pobres foram responsáveis por apenas 7%.

Há também uma grande diferença de responsabilidade entre as nações. Enquanto grande parte dos extremos climáticos ocorrem nos países em desenvolvimento, as maiores economias do mundo, que integram o G20, são responsáveis por 78% das emissões de carbono.

Para Werneck, reconhecer tais desigualdades e falar sobre justiça climática é crucial para que medidas de adaptação e mitigação sejam colocadas em prática. Um processo no qual as pessoas atingidas devem ser ouvidas e consideradas parte da solução.

Confira a entrevista na íntegra.

Por que falar de clima climática e direitos humanos juntos? Como essas questões se cruzam?

Porque se cruzam no corpo e na vida das pessoas, basicamente. É claro que a situação do clima e a crise climática têm rebatimento no meio ambiente, nos outros seres vivos que habitam o planeta, mas têm um impacto grande sobre nós, sobre a humanidade.

O esforço da Anistia Internacional é exatamente lembrar os humanos disso: que tem tudo a ver com a gente. Tem tudo a ver com você, comigo, com qualquer pessoa que pisa sobre esse planeta, né? Porque durante muito tempo, as pessoas, de certa forma, não conectaram isso à sua vida e principalmente não conectam essa crise, aos seus direitos e à sua dignidade como ser humano também, não é? Então, o esforço da Anistia Internacional é exatamente esse.

Arquivo EBC
Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil

Dizer: “Olha, tem a ver com você, a crise climática acontece e ela acontece durante o processo que a produz. E como consequência dela, existem várias e graves violações de direitos humanos”. Vários direitos estão sendo afetados.

O relatório também afirma que as mudanças climáticas manifestam uma desigualdade estrutural, que, ao mesmo tempo, aprofundam a desigualdade. Como se dá esse processo? E, neste cenário, qual a importância da justiça climática?

A crise climática significa destruição de processos, de ambientes, de condições de vida e afeta, como eu disse, toda a humanidade, todo mundo que está sobre o planeta. Mas, como tudo, não afeta igualmente todas as pessoas.

Aqueles grupos, aquelas populações, aquelas pessoas que já vivem uma exclusão estrutural, seja a maioria das mulheres, a maioria da população negra, indígenas, populações tradicionais em diferentes partes do mundo, segregadas por raça, por casta, os mais pobres… Essas populações já estavam experimentando isso. Isso era muito grave. Já era uma injustiça, eram muitas violações de direitos humanos.

Essas populações, quando vem essa crise, ou quando vem qualquer crise, vão sofrer um impacto muito mais grave, muito mais profundo. Primeiro porque já estão espoliadas, exploradas e atacadas. E têm menos ferramentas para responder, reagir e se proteger.

E segundo porque é nos territórios onde essas pessoas vivem, onde essas pessoas trabalham, que os efeitos vão ser vividos de forma mais dramática.

A mudança do regime de chuva faz chover em todo lugar, mas para quem mora, por exemplo, numa favela e a encosta desce…. É diferente de quem mora numa encosta de uma ilha grega porque ela não vai descer. As condições de habitar aquilo ali são diferentes.

Os rios secam. Vai faltar água para todo mundo, mas para a população ribeirinha vai ser muito mais difícil pois todo o seu modo de vida, sua história, sua alimentação, está ali. [Essa população] vai ser afetada diferente, por exemplo, de alguém que vive na avenida Paulista que ainda vai importar água de outro lugar, até que a última água acabe.

Há também uma desigualdade no impacto da crise, que é uma desigualdade na capacidade que as populações, que as pessoas têm, de tentar mitigar esses impactos, tentar reagir e resolver esse problema. É uma injustiça.

Quando se soma tudo isso, a condição dessa população que já vinha espoliada, já vinha excluída, já vinha sofrendo impactos da desigualdade, à crise climática, são forças que levam cada vez mais para baixo, que empurram cada vez mais para situações cada vez mais precárias. É injustiça sobre injustiça. É precarização sobre precarização.

É preciso olhar para a condição de vida das pessoas .As pessoas têm direitos que precisam ser restituídos. E com urgência. Porque na crise climática, por exemplo, para grande parte dessas populações, é caso de vida ou de morte.

Podemos considerar que não falar e não agir sobre a crise climática já é uma violação de direitos humanos por si só?

Sim! A crise está acontecendo, está tendo impacto na vida das pessoas agora. As mudanças climáticas têm provocado mortes em diferentes partes do mundo. O direito à vida também está sendo violado. Não atender a um direito é violar direitos. Deixar a sobrevida do planeta ir ladeira abaixo também é uma violação de direitos.

Precisamos agir agora porque agora tem gente sofrendo. Milhões de pessoas injustamente impactadas por decisões e ações gerando lucros para um grupo pequeno. Isso é violação de direitos humanos.

A partir do que nos traz, então, é imprescindível fazer o recorte de gênero e de raça em relação às populações que estão sendo afetadas?

Com certeza. Os grupos inferiorizados por raça, cor e casta, incluindo aí povos indígenas, já são grupos bastante vilipendiados e que têm muitos direitos violados. Mas nesses grupos as mulheres pagam um preço muito alto porque nas sociedades como as nossas, em todas elas, cabe às mulheres as ações de subsistência da família e da comunidade.

Quando falta água, é ela que tem que ir buscar água para todo mundo. Quando as pessoas adoecem, está sobre ela as principais responsabilidades de cuidado. Sem contar que, além desse custo todo dos papéis de gênero, tem um custo para ela mesma. É negado a ela o direito de viver plenamente por uma sociedade que lhe impõe muitas barreiras.

Imagina a deterioração ambiental e climática já nessas condições difíceis de atuar. O custo é muito alto. Daí a coisa da injustiça. É preciso considerar gênero, raça, idade… Os mais novos e mais velhos também pagarão por isso mais tarde. Os eventos extremos climáticos – frio demais e calor demais – provocam adoecimento e morte primeiro nesses grupos. Nos mais novos e nos mais velhos. Existem grupos específicos que vão pagar um preço mais alto e precisamos lembrar disso.

Precisamos pensar aqui e agora. O planeta é a nossa casa. É aqui que a gente precisa viver. E quando a gente morrer, é preciso que as futuras gerações possam habitar aqui com dignidade.

Esse ponto internacional entra em uma outra questão que gostaria de trazer. Os países que mais colaboram com as emissões de gases do efeito estufa não são as nações que mais sofrem as consequências das alterações climáticas.

Isso. Esses modelos de desenvolvimento são como um colonialismo que se edita. As nações mais ricas, entre aspas, invadiam outros territórios e extraíam deles o que era necessário e deixavam o que deixassem. Nós somos frutos desse sistema político e econômico injusto. Isso não acabou.

Alguns países se moveram, houve uma dança de cadeiras entre eles, mas isso não mudou. É preciso que eles sejam chamados à responsabilidade. Eles precisam de fato tomar seu lugar na correção desse rumo e na reparação do dano causado.

Mas é preciso lembrar também que apesar do nosso país não estar entre esses, ele também tem o que fazer. Cada país tem uma responsabilidade, cada governante tem um dever a cumprir em relação às medidas que têm que fazer para atenuar os efeitos da crise climática que já estão acontecendo agora.

Aproveitando esse gancho, qual é a postura brasileira frente à intensificação da crise climática? A Anistia também apresenta algumas recomendações, quais são elas?

É preciso dizer que existe uma expressão entre nós, no Brasil, que é “terra arrasada”. O que o governo brasileiro está fazendo é investir nessa estratégia de terra arrasada, contribuir mais para a crise climática e não para atenuá-la, não pra tentar mitigar seus impactos.

A degradação ambiental foi intensificada nesse governo, os investimentos em combustíveis fósseis continuam. E agora ligando termelétrica a carvão com a crise energética. O governo não investe em soluções sustentáveis.

Acreditam que, entre aspas, existe um lucro que justifica tudo. Um ganho que na experiência do Brasil não vai ser nem repartido, que vai ficar na mão de poucos.

O Brasil está indo muito mal nessa visão. Não temos um governante que reconheça nem que a crise está entre nós, nem sua responsabilidade em relação ao seu dever de trabalhar para mitigá-la.

Ou seja, de certa forma, diante da crise climática, nós, brasileiros e brasileiras, estamos quase que por nossa própria conta. Isso é muito grave.

O relatório aponta uma série de recomendações. No sentido dos países, e o Brasil entre eles, precisam começar a tomar agora as atitudes necessárias. Tomar medidas que precisam ser sérias, profundas, amplas e, como diz o relatório, audaciosas.

É preciso investir na mudança da matriz energética agora. Desinvestir em combustíveis fósseis e começar a investir em energia renovável. E nessa produção energética, é preciso garantir os direitos humanos, porque não adianta acreditar que a sustentabilidade é possível se não respeitar os direitos humanos. Ou seja, tem que garantir os direitos humanos em cada item desse.

É preciso trabalhar sério para zerar as emissões [de gases do efeito estufa]. Não tem outra saída. Criar um plano de descarbonização, uma estratégia de redução da crise climática. Não aceitar as negociações do comércio de carbono que, na verdade, são licenças para devastar mais, para amplificar a crise em troca de trocado.

É preciso investir nas pessoas. Ajudar aqueles que já são afetados a superar o impacto da crise nesse momento e a se adaptarem a novos padrões de existência. Novos padrões de consumo, novos padrões de forma de viver. Priorizando sempre aquelas pessoas que são mais afetadas primeiro.

Então as ações para frear as alterações climáticas devem necessariamente ser inter-setoriais? Envolver a todos?

Os governos, os estados nacionais têm deveres e a gente também. Os indivíduos também têm um lugar nessa mesa. Nós também temos que ter um compromisso, o compromisso de justiça, um compromisso de respeito aos direitos humanos e de fazer respeitar os direitos humanos. Não se pode investir naqueles políticos, partidos ou que quer que seja, instituições, que se propõem a produzir mais devastação e violação de direitos humanos.

E também do ponto de vista do nível cotidiano, precisamos rever os nossos modos de vida e aprender a encontrar outras formas de habitar esse planeta.

Então, é por isso que ninguém fica de fora. Seja governante, seja líder de empresa… As empresas também têm todo o dever de parar a devastação, parar seus modos de espoliação do planeta e do clima, e entrar numa outra lógica que respeite as pessoas, que respeite a vida.

É preciso que haja um futuro para a humanidade. Essa geração tem o compromisso de deixar o planeta habitável para os que vêm depois. Nem chegamos no limite ainda e já vemos como é muito ruim.

E o pior ainda está para chegar. Se não fizermos o que precisa ser feito para pressionarmos as autoridades e empresas para o que devem fazer, estará tudo perdido. Em muito pouco tempo.

Ouça entrevista com Jurema Werneck no podcast As Árvores Somos Nozes

CC.0 Wikimedia Commons


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