Torneiras secas

Enquanto Doria nega crise hídrica, falta água na periferia de São Paulo

Devastação ambiental e falta de programas de proteção e recuperação dos mananciais resultam em situação “bastante preocupante” no estado. Para especialista, governo paulista está em “processo de negação”

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"Aqui nós enfrentamos todos os dias a falta de água. Às 20h, ou até antes, a gente percebe que o fluxo vai diminuindo e lá para às 20h30 já não tem água nenhuma da rua", descreve moradora da zona leste

São Paulo – A população da Grande São Paulo está em risco de viver uma nova crise de abastecimento, ainda mais grave do que a registrada nos anos de 2014 e 2015, quando os sistemas Cantareira e Alto Tietê quase secaram. Desde outubro de 2020 as chuvas na região estão abaixo da média e o último outono foi o mais seco em 20 anos, com recorde em abril, quando choveu apenas 7% do esperado para todo o mês. 

Dados da Sabesp mostram que hoje, todos os reservatórios estão no pior nível dos últimos cinco anos. No conjunto das represas, o volume de água é 20% menor do que o registrado em 2013, ano anterior à última seca. A situação é considerada grave por especialistas em recursos hídricos, que cobram da Sabesp e do governo de João Doria (PSDB) o reconhecimento do problema. A sugestão é que o estado comece a aplicar medidas para redução do consumo de água imediatamente. Inclusive para o setor econômico, responsável pela maior parte da demanda. 

Conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento, Amauri Polachi explica que a devastação ambiental e a falta de programas de proteção e recuperação dos mananciais são a causa principal da crise. Mas, embora a situação seja “bastante preocupante”, como adverte, o governo estadual está em “um processo de negação dessa situação crítica. E na crise que se iniciou em 2013 e foi prolongada até 2015, isso foi extremamente prejudicial”. 

Na periferia, há racionamento

A Sabesp já se posicionou minimizando a crise e descartando o risco de desabastecimento de água sob a justificativa de que as obras de transposição tornaram o sistema mais resiliente. Mas, na periferia da capital paulista, a memória relacionada a dias sem água e armazenamento feito em garrafas PET e bacias ainda está na mente dos moradores. E é uma lembrança revivida todas as noites e em muitos finais de semana.

Moradora da Vila Formosa, na zona leste da cidade, a artesã Fernanda Marques relata que tem dificuldades em realizar tarefas do cotidiano por conta dos constantes cortes no fornecimento.

“Aqui nós enfrentamos todos os dias a falta de água. Às 20h, ou até antes, a gente percebe que o fluxo vai diminuindo e lá pelas 20h30 já não tem água nenhuma da rua. Isso atrapalha muito a nossa rotina porque temos que nos planejar para fazer algumas coisas até as 19h30 ou as 20h no máximo. Já sabemos que isso vai acontecer todos os dias e que a água só vai voltar de madrugada. Inclusive essa falta de água tem acontecido há alguns meses e nos finais de semana, principalmente domingo”, descreve. 

No Jardim das Imbuías, na zona sul, a situação não é diferente. A falta de água constante, inclusive, afeta até mesmo os pequenos negócios, como conta o produtor cultural Kleber Luís. “Além de morar, trabalho no mesmo lugar. Tenho um estabelecimento comercial, um estúdio de música que recebe bandas e artistas para ensaios e gravações. Mas estamos limitando o horário de atendimento porque em torno de 22h, 22h30, falta água e vai voltar só de madrugada, às 4h30. O estúdio é um estabelecimento que funciona geralmente à noite, mas ficamos com dificuldades de fazer os atendimentos.”

População é penalizada

Trabalhador da área da saúde, o auxiliar de atendimento Edson Pedro Silva quando chega em sua casa, na Vila Maria, zona norte, enfrenta ainda dificuldade para se prevenir contra a covid-19 devido à falta de água constante na região. “Há mais de um ano quando a pandemia começou, piorou mais a situação. Era o momento que mais precisávamos de água, estava voltando do trabalho para tomar banho, entre outros afazeres domésticos. Isso acarretou em muitos problemas que não estávamos prevendo”, lamenta Silva. 

A Sabesp justifica que não há corte no fornecimento, mas sim a redução de pressão na rede para diminuir a perda de água com vazamentos. Amauri Polachi explica que essa medida não pode ser usada como justificativa para penalizar uma parte da população, principalmente as de regiões periféricas, que podem não contar com caixas d’água. “Numa crise hídrica é importante promover a justiça ambiental e o abastecimento de água equitativamente distribuído, sem penalizar as populações mais vulneráveis”, contesta.

A expectativa é que a situação das represas tenha um alívio na primavera e no verão, com a volta das chuvas. Mas há o risco de o fenômeno La Ninã ocorrer novamente este ano, levando uma nova redução das chuvas. 

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