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Na defensiva, Salles falseia dados sobre museu e já admite desistir de privatização

Pessoas ligadas ao Museu do Meio Ambiente afirmam que ministro mentiu sobre número de atividades no espaço, considerado referência por cientistas

Reprodução
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Instalado no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, o Museu do Meio Ambiente também entrou na mira privatista do governo e de Salles

Rio de Janeiro – A enxurrada de críticas que vem sofrendo desde que anunciou sua intenção de transformar em um hotel-boutique o Museu do Meio Ambiente, localizado no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, colocou Ricardo Salles na defensiva. Em duas postagens feitas em redes sociais, o ministro do Meio Ambiente primeiro admitiu abandonar a proposta e depois mentiu sobre as atividades realizadas pelo museu.

No Twitter, Salles admitiu, ainda que de forma jocosa, abandonar a ideia de privatizar o museu. “Se preferirem deixar tudo como está, beleza”, disse. Na mesma postagem, no entanto, voltou a defender a proposta: “A ideia é realizar um estudo para eventual concessão do espaço pouco utilizado do museu, convertendo num hotel-boutique, gerando empregos, recursos e investimentos para recuperação do Jardim Botânico como um todo”.

Referência de estudos

Horas depois, outra postagem feita pelo ministro, desta vez no Instagram, acirrou ainda mais os ânimos daqueles que se mobilizam contra a intenção do governo de privatizar o Museu do Meio Ambiente. De acordo com o relato de pessoas próximas à realidade do museu, Salles mentiu sobre o número de atividades realizadas no espaço, que é considerado por cientistas de diversas áreas como uma referência para estudos sobre a flora e a biodiversidade brasileiras.

Assim, ao procurar defender sua ideia de entregar o espaço à iniciativa privada, o ministro postou uma tabelinha segundo a qual o Museu do Meio Ambiente teria realizado somente duas exposições no ano passado. Além disso, uma em 2018, três em 2017 e nenhuma em 2016. Ao lado da tabela, a frase: “Resumo das exposições ocorridas no Museu do Jardim Botânico nos últimos anos, num local que custa 100 mil reais por mês ao contribuinte”.

Exposições e outras atividades

Apesar da afirmação do ministro, documentos de permissão de uso do espaço do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ, órgão subordinado ao Ministério do Meio Ambiente), responsável pela gestão do museu, revelam que, além de suas exposições permanentes, o museu se notabilizou nos últimos anos pela realização de diversas atividades científicas e acadêmicas. De acordo com os documentos, aos quais a RBA teve acesso exclusivo, foram realizadas 25 atividades desse tipo no ano passado. Em 2018 foram realizadas 18 atividades e em 2017, nove.

Tomando por base as atividades do Museu do Meio Ambiente em 2019, nota-se que estas ocorreram em datas importantes do calendário científico e ambiental. Por exemplo, o Dia da Água ou o dia do aniversário de nascimento do naturalista Charles Darwin, por exemplo. Outras atividades buscaram suscitar e difundir novas temáticas ambientais, como o evento realizado no Dia Nacional das Abelhas. Além de mostrar realidades pouco conhecidas da flora brasileira, como a exibição do vídeo “Exposição às Montanhas da Amazônia”, realizada na sala multimídia do museu.

O último evento de importância internacional ocorrido no Museu do Meio Ambiente antes da paralisação de atividades provocada pela pandemia de covid-19 aconteceu nos dias 4 e 5 de novembro de 2019. Foi um workshop preparatório às discussões globais sobre biodiversidade organizado pelo Instituto Internacional para a Sustentabilidade. O JBRJ é o órgão responsável por aplicar as políticas assumidas pelo Brasil junto à Convenção de Diversidade Biológica da Organização das Nações Unidas (ONU).

“Papel importantíssimo”

Presidente do JBRJ durante 10 anos, Liszt Vieira exorciza a proposta de acabar com o espaço. “O Museu do Meio Ambiente cumpre o papel importantíssimo de aproximar a ciência da sociedade. A ideia de privatizar o museu para transformá-lo em um hotel é uma aberração cultural. Além disso, é um equívoco econômico, pois os hotéis na cidade do Rio de Janeiro estão com ocupação reduzida em 50%”, diz.

Em artigo assinado ao lado de Fabio Scarano, que foi diretor de Pesquisas do JBRJ, Liszt ressalta a importância do museu. “A criação do Museu do Meio Ambiente foi um trabalho em equipe que exigiu um esforço enorme. Um prédio condenado a desabar, fechado há décadas, foi todo restaurado e adaptado para funcionar como Museu, que ofereceu à sociedade inúmeras exposições de conteúdo ambiental e cultural.”

A ideia de que o museu desperdiça o dinheiro do contribuinte, insinuada por Salles, também é rechaçada pelos autores. “Apesar de todas as dificuldades orçamentárias, conseguimos realizar parcerias que viabilizaram a instituição do Museu do Meio Ambiente, com um programa educativo e de divulgação, que recebeu crianças de escolas públicas e particulares, especialistas e o público em geral”, diz ainda o artigo.

Outro fator importante, lembra Liszt, é que a privatização do Museu do Meio Ambiente se insere em um projeto maior de desmonte do JBRJ. “O Jardim Botânico do Rio de Janeiro é o instituto de pesquisa do Ministério do Meio Ambiente que oferece ciência de qualidade e de padrão internacional. Essa ciência se aplica diretamente às ações de conservação da flora brasileira.”

Liszt Vieira presidiu o JBRJ de 2003 a 2013, durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Trabalhou ainda com os ministros Marina Silva, Carlos Minc e Izabela Teixeira. “Ricardo Salles é o que temos para hoje”, brinca.

Instituição complexa

“Defender o Jardim Botânico é defender uma instituição que é mais do que parece, e que entrega à sociedade mais do que ela pensa”, afirma em outro artigo Samyra Crespo, também ex-presidente do JBRJ durante os governos petistas. “Olhando para o miolo do Jardim, temos ali uma instituição complexa que inclui um instituto de pesquisa acadêmica, científica, uma das mais respeitadas do mundo, que coopera com outros centros científicos e que está mapeando nada mais nada menos que a flora do mundo. Este centro possui regras de funcionamento determinadas pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia”, afirma.

Samyra, que presidiu o Jardim Botânico entre 2013 e 2016, dá outros exemplos de como as relações do JBRJ extrapolam o MMA. “O JBRJ inclui também uma Escola de Botânica, de pós-graduação, que recebe alunos do Brasil todo. Esta escola é  regulada pelo MEC. Inclui ainda uma Biblioteca de Obras Raras, que segue as normas do Ministério da Cultura.”