"Passando a boiada"

‘Pandemia de garimpo’ ameaça yanomamis e expõe política genocida do governo

Cerca de 20 mil garimpeiros são hoje o principal vetor do novo coronavírus em terras indígenas. Yanomamis são vítimas de diversas violações, entre elas, a que levou ao desaparecimento dos corpos de três bebês

Rogério Assis/ISA
Rogério Assis/ISA
Garimpo ilegal nas terras Yanomami é consequência do incentivo de Bolsonaro, desde a campanha eleitoral

São Paulo – Ao menos 12 denúncias de garimpos em Unidades de Conservação e Terras Indígenas da Bacia do Xingu foram protocoladas de dezembro de 2018 a maio deste ano. É o que mostra levantamento da Rede Xingu+, ao apontar para uma “pandemia de garimpo na região”, após a eleição de Jair Bolsonaro, como descreve a coordenadora do programa Xingu, do Instituto Socioambiental (ISA), Biviany Rojas Garzón. 

Em debate on-line promovido nesta terça (30) pela ISA, a advogada, cientista política e mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UNB) denunciou a atuação de invasores na região. O que representa dupla ameaça aos indígenas nesse momento de pandemia do novo coronavírus: o risco de contágio e o de destruição das florestas.

De acordo com o dossiê da Rede Xingu+, frentes de garimpo antigas, que haviam sido abandonadas no começo deste século, estão sendo retomadas por extrativistas ilegais. Trata-se de áreas protegidas que foram demarcadas e de Terras Indígenas (TI) regularizadas pelo governo Lula. 

São nessas áreas, com maiores índices de invasão por garimpo, que está ocorrendo um surto de covid-19, de acordo com Biviany. Nas 53 cidades que compõem a bacia do Xingu, entre os dias 18 e 25 de junho, os casos de óbitos passaram de 232 para 290. Cerca de 3.400 indígenas foram infectados pelo coronavírus em apenas uma semana, confirmando até então um total de 13,9 mil casos. Os dados são Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Xingu.

“Não é ‘forçar a barra’, uma metáfora ou licença literária falar que de fato ter terras ocupadas por garimpos, grilagem ou roubo de madeiras está diretamente relacionado à vulnerabilidade e ao aumento de risco da saúde dessas populações”, destaca a coordenadora do ISA. 

Ameaçados

A situação é ainda mais grave na TI Yanomami. Estudo do ISA e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) divulgado no dia 3 de junho já advertia que aquela comunidade indígena era a mais vulnerável à pandemia em toda a Amazônia. 

De acordo com o relatório, mais de 20 mil garimpeiros são hoje o principal vetor do novo coronavírus na região. No pior cenário, 40% dos cidadãos Yanomami que vivem nas zonas de minas ilegais podem ser infectados. Isso representa um total de cinco mil indígenas. “É uma situação absolutamente caótica e absurda, que está acontecendo em pleno século 21. E agora, nos últimos tempos, essa situação piorou muito justamente por uma postura de incentivo do governo federal a essas práticas ilegais”, protesta o professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG Rogério do Pateo. 

Em entrevista ao programa Conexões, da Rádio UFMG Educativa, ele afirma que as invasões ilegais estão diretamente relacionadas à falta de monitoramento e controle do Estado. De acordo com o pesquisador, o garimpo já era antes vetor de “vários tipos de doenças”. Entre elas, a malária, doenças venéreas, além de “outros tipos de violência”. “Nessa semana chegaram relatos de conflitos onde dois yanomamis foram mortos, assassinados pelos garimpeiros. Tem assédio sexual e estupro, aliciamentos de jovens, problemas ambientais, sanitários e nutricionais”, elenca. 

Pateo avalia que o governo Bolsonaro já coloca em prática o projeto de legalização de garimpos em TIs. “É aquela história de ‘passar a boiada‘. Enquanto por um lado o governo tenta legalizar a exploração mineral, por baixo do pano, na verdade, existe um desmonte total da estrutura de controle e fiscalização. E um incentivo para que as pessoas se sintam protegidas para cometer essas ilegalidades e invadir a terra indígena”, observa o professor. 

Covid-19 entre indígenas

Agora, no entanto, o risco é de disseminação da pandemia dentro da floresta, em populações que são muito mais vulneráveis ao vírus. Até esta terça (30), o Boletim Epidemiológico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) já registrava 243 casos confirmados e quatro óbitos em decorrência da covid-19 entre os Yanomami.

No geral, a Sesai contabiliza 6.488 casos confirmados entre indígenas, além de outros 3.128 que estão cumprindo quarentena até a cura da doença. O boletim também divide em 3.189 casos curados e 679 suspeitos. Pelo menos 156 indígenas já perderam a vida. Para os especialistas, a situação demanda controle imediato do Estado para impedir uma nova tragédia.

O estudo do ISA e da UFMG também adverte para as condições de moradias coletivas e o histórico de morbidade alta por infecções respiratórias. A precária infraestrutura de saúde local também é um fator que agrava a situação dos Yanomami frente à pandemia. O relatório ainda confirma que cerca de 2 mil hectares de floresta da TI já foram degradados pelo garimpo ilegal. 

Horror sem nome 

Além de todos esses riscos à etnia, na semana passada a jornalista Eliane Brum denunciou, em artigo no jornal El País, uma das maiores violações que poderiam ser cometidas contra os Yanomami. Três mulheres indígenas da etnia, do grupo Sanöma, “precisaram encampar uma verdadeira saga para descobrir onde estavam os corpos de seus bebês”. “Um horror para o qual será preciso inventar um nome”, registrou o El País

À jornalista, as mães contaram terem sido levadas em maio para Boa Vista, por suspeitas de pneumonia. No hospital, as crianças foram contaminadas pelo coronavírus e lá teriam morrido. Seus corpos, no entanto, desapareceram, e ninguém informava às indígenas onde eles estavam. 

O caso ganhou repercussão nas redes. Nesta segunda (29), o site Amazônia Real encontrou as duas crianças Sanöma enterradas no Parque Cemitério Campo da Saudade, na capital de Roraima. O corpo de um outro bebê do grupo foi encontrado pela reportagem no Instituto Médico Legal (IML). Além da violação dos direitos à informação das mães das crianças, o caso é considerado também uma tragédia cultural, por violar o que há de mais sagrado para o povo Yanomami, os rituais funerários. 

Política do genocídio

Rogério do Pateo comenta que essa história tem um “nível de violência, desrespeito e preconceito absolutamente inaceitável”. À Rádio Educativa UFMG, o antropólogo ressalta que o que está se configurando é um cenário de “política de genocídio”. “E eu não falo isso em termos genéricos. Tem uma definição na legislação brasileira que é de 1956 que descreve o que seria uma política de genocídio”.

“Essa associação perversa entre crise sanitária e invasão de garimpeiros, com desrespeito completo aos rituais culturais desses povos, o risco de violência, de morte e extermínio que vem associado ao interesse explícito do poder público ao acesso aos recursos naturais dentro dessas TI. Isso realmente está configurando um caso explícito de uma espécie de política de genocídio que tem que ser enfrentada pela sociedade e as instituições brasileiras”, finaliza. 

Edição: Fábio M. Michel