Modelo civilizatório

Crença no ‘Deus Dinheiro’ nos expõe ao risco de extinção, afirma Nicolelis

Debate promovido pelo Fórum Popular da Natureza reuniu especialistas para discutir a emergência ecológica e a necessidade de superação do capitalismo

GUE/NGL
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Capitalismo não é capaz de conter a devastação ambiental que criou

São Paulo – Para o neurocientista Miguel Nicolelis, uma das principais lições que podem ser tiradas a partir da atual pandemia é que o modelo econômico atual, baseado na busca incessante pelo lucro, deixou de privilegiar investimentos necessários em saúde e ciência. É um sistema baseado em duas abstrações que ele chamou de “Igreja dos Mercados” e “o Deus Dinheiro”, que passaram a funcionar como uma mitologia religiosa.

Foi o que possibilitou, segundo ele, que o novo coronavírus emergisse e saísse do controle. Outro fator é que essa nova religião é baseada na crença ilimitada do progresso. Num mundo com recursos naturais limitados. O avanço sobre o que resta das regiões selvagens no planeta torna cada vez mais provável a emergência de novas doenças, como a covid-19.

Com outros pesquisadores, ele participou de debate virtual nesta quinta-feira (4), promovido pelo Fórum Popular da Natureza. Esse fórum reúne movimentos sociais, organizações da sociedade civil, sindicatos, ambientalistas e ativistas que lutam contra da devastação ambiental planetária.

Ilusões mentais

“Esse modelos impostos ao mundo nos últimos 300 anos deixou de pensar em coisas vitais para a sobrevivência da nossa espécie”, diz Nicolelis. “A maior delas é que esse modelo que privilegia o que chamo de A Igreja dos Mercados e o Deus Dinheiro, uma religião como qualquer outra, basicamente vendeu a lorota de que era possível manter um crescimento a taxas absurdas, de 5%, 6% ao ano, sem levar em conta de que moramos e vivemos numa maravilhosa rocha azul com recursos não infinitos. Esse modelo é absolutamente impossível de ser sustentado.”

Atualmente coordenando a o Comitê Científico do Consórcio do Nordeste, esforço voltado a combater a pandemia, Nicolelis afirma que o cérebro humano é “o verdadeiro criador de tudo”. Cria “miragens”, como modelos civilizatórios e sistemas econômicos, que, na maioria das vezes, “não levam em conta nem o bem-estar do planeta, nem da própria espécie humana”.

O “grande desafio”, segundo ele, “é nos livrarmos desse modo de desenvolvimento não sustentável, enquanto ainda há tempo, para salvar não só o planeta, mas a nossa espécie e as outras espécies que sofrem com as nossas ilusões mentais”.

Clima e capitalismo

Para o historiador e jornalista indiano Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, o capitalismo não é capaz de deter as mudanças climáticas, como promete. Segundo ele, as empresas capitalistas podem até fazer a transição para fontes sustentáveis de energia, em substituição aos combustíveis fósseis. Mas a sua lógica de produção vai seguir produzindo devastação e dominação.

Ele cita, por exemplo, que as baterias utilizadas em smartphones e carros elétricos necessitam de lítio e cobalto para serem produzidas. A busca pelo primeiro produziu um “golpe de estado” na Bolívia, que concentra as maiores reservas mundiais do minério. Já a mineração de cobalto, na República Democrática do Congo, utiliza mão de obra infantil.

Outro problema, segundo ele, é que as cadeias globais de produção demandam muita energia para fazer circular os produtos ao redor do globo. Além de produzirem uma quantidade enorme de lixo. A estrutura militar montada para manter tais cadeias é outro problema. Ele afirma que a indústria bélica norte-americana é “a maior emissora de poluentes no mundo”.

Alternativa socialista

A contradição, segundo Prashad, é que mesmo com todo esse desenvolvimento tecnológico, os Estados Unidos praticamente “desmoronaram” em meio à pandemia. Precisaram ser socorridos, por exemplo, com o envio de 450 mil equipamentos de proteção individual (EPIs) pelo Vietnã. Este, assim como Cuba, Venezuela, China e o estado indiano de Querala, governados por socialistas, foram mais bem-sucedidos em conter a disseminação do coronavírus. “Portanto, não é verdade que todos os países do mundo foram afetados da mesma forma. Há uma diferença entre a lógica capitalista e a lógica socialista.”

Contradições

O filósofo Marildo Menegat, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destacou as contradições do sistema capitalista. Para ele, esse sistema opera transformando dinheiro em mais dinheiro. Contudo, o desenvolvimento tecnológico reduz, cada vez mais, o valor das mercadorias. “Para compensar essa falta de valor das mercadorias, precisa produzir mais amplamente. Sufocando as sociedades com novas e artificiais necessidades.”

É esse modelo, segundo ele, que leva à devastação ambiental do planeta. “Não falamos mais da destruição de algumas regiões do planeta, mas do exaurimento de todos os recursos naturais.”

O aquecimento global, responsável por chuvas torrenciais que arrasaram cidades como o Rio de Janeiro e Belo Horizonte, no início do ano, é uma consequência inevitável. “Não se trata mais de podermos evitá-lo. Podemos, no máximo, mitigar as suas consequências. Mal passamos dessa fase, e entramos numa pandemia. Todos esses fatores tem a ver com a destruição da natureza.”

Emergência

O historiador Luiz Marques, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), destaca que os impactos ambientais promovidos pelo capitalismo “não são lineares, mas se magnificam cada vez mais”, ao longo do tempo. Ele é autor do livro Capitalismo e colapso ambiental (Ed. Unicamp). De acordo com a sua pesquisa, num período de 26 anos, entre 1988 e 2014, as indústrias lançaram na atmosfera a mesma quantidade de dióxido de carbono produzida desde o início da Revolução Industrial (meados do século 18) até aquele momento.

“Essa progressão é cada vez maior, exponencial. Mesmo que cresça a uma taxa relativamente menor, as consequências são muito maiores”, pontua. “Estamos numa situação em que o problema não é para amanhã, nem mesmo para hoje. É para ontem. Estamos muito atrasados. Estamos perdendo essa corrida. É necessário, mais do que nunca, acreditar na capacidade humana de ser imprevisível e reagir a essas mudanças.”

Confira a íntegra do debate:


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