#AlcantaraÉQuilombo

Acordo da Base de Alcântara fere soberania e passa por cima de direitos dos quilombolas

Cerca de 800 famílias correm o risco de serem despejadas de suas terras com acordo do governo, que tenta acelerar aprovação. Quilombolas e movimentos destacam que processo desrespeita direitos e falta com debate junto à população

José Cruz/EBC
José Cruz/EBC
“Hoje Alcântara está prestes a ser toda vendida, ou mesmo sendo entregue para a base de Alcântara. E as famílias que lá existem hoje pedem socorro", destaca representante da Associação dos Moradores do Quilombo de Alcântara

São Paulo – Representantes de comunidades quilombolas que residem no município de Alcântara, no Maranhão, acompanham na Câmara dos Deputados a tramitação do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), que prevê a cessão da base de lançamento de foguetes e satélites para os Estados Unidos.

Representando 792 famílias quilombolas, quase duas mil pessoas, movimentos da sociedade civil organizada alegam que diversos pontos não foram divulgados ou debatidos com a população, como o risco de expulsão das comunidades tradicionais de suas terras ancestrais, ocupadas há mais de três séculos, que agora têm seu território ameaçado com o decreto legislativo.

Na manhã da terça-feira (3), quilombolas fizeram “corpo a corpo” com os parlamentares no aeroporto de Brasília para que o acordo, já aprovado na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Casa, não avance para votação em plenário. Os parlamentares, especialmente o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), tentam acelerar o projeto – que teve pedido de urgência decretado nesta semana. O intuito dos apoiadores é que o acordo seja levado direto para o plenário da Câmara sem passar por comissões.

Em entrevista ao Seu Jornal, da TVT, o assessor jurídico das comunidades e integrante do Movimento dos Atingidos pela Base Especial de Alcântara (Mabe), Danilo Cerejo, explicou que apesar da movimentação dos deputados, a tramitação do acordo desconsidera a existência de um plano de remoção das comunidades que estão expostas à insegurança jurídica.

De acordo com o assessor, desde 2008 o território dos quilombolas de Alcântara possui Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) assinado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), assegurando uma área de 78,1 mil hectares mas, até hoje, o processo de titulação não foi concluído. “(As comunidades tradicionais) nunca tiveram seu território efetivamente titulado conforme manda a Constituição de 1988 e estão também no campo da incerteza porque não sabem, não têm o direito de planejar o seu próprio futuro”, contesta Cerejo.

Na Câmara, os movimentos sociais tentam pressionar os deputados e impedir que o requerimento seja aprovado, por atropelar o debate sobre temas sensíveis como o direitos dos povos tradicionais sobre o território e a própria soberania do Brasil. Assinado em março pelos presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, dos Estados Unidos, o acordo garante a concessão da base e limita o espaço brasileiro à utilização de componentes estadunidense, sem contrapartidas, analisam os representantes e especialistas.

“Hoje Alcântara está prestes a ser toda vendida, ou mesmo sendo entregue para a base de Alcântara. E as famílias que lá existem hoje pedem socorro e o apoio dos parlamentares porque muito estão a favor desse governo que aí está esquecendo das comunidades tradicionais quilombolas”, afirma a integrante da Associação dos Moradores do Quilombo de Alcântara Lourença Vieira.

Histórico de violações

Representantes também destacam que para a efetivação do AST será necessário expandir a atual área do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) de 8 mil para 20 mil hectares o que, por consequência, deslocará aproximadamente dois mil quilombolas, assim como já ocorreu na década de 1980, quando a base foi criada e mais de 300 famílias foram desalojadas. .

De acordo com o portal Amazônia Real, em 2008, na Organização Internacional do Trabalho (OIT), a agência da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, na Suíça, os quilombolas denunciaram as violações cometidas pelo governo brasileiro contra aquelas famílias.

Advogado na Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos (SMDDH) Diogo Cabral acrescenta, pelo Twitter, que a expansão em 12 mil hectares pretendida pelo governo federal prejudicará o modo de vida das comunidades quilombolas, que vivem da renda da pesca, agricultura, venda do artesanato e de programas sociais como Bolsa Família e de aposentadoria rurais. “Afetará o equilíbrio das relações econômicas, sociais e culturais entre as comunidades quilombolas. Ela (expansão) limitará o livre e permanente acesso das comunidades às áreas do litoral de Alcântara frente à proposta de criação de corredores nas áreas de lançamento. E o mais grave, se instalará em Alcântara uma situação de insegurança alimentar sem precedentes”, adverte o advogado.

Por meio de carta enviada ao Congresso, os movimentos e representantes jurídicos cobram a abstenção do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) até que a titulação da área seja firmada pelo Incra, que se faça um estudo sobre o impacto ambiental do CLA e as comunidades locais sejam consultadas, assim como o processo de remoção forçada seja desautorizado e que, após o cumprimento das medidas, realizem-se no mínimo três audiências públicas na Câmara e no Senado com a participação dos quilombolas e movimentos.

#AlcantaraÉQuilombola

Nas redes sociais, a Coalização Negra por Direitos, outra organização que encabeça a luta em defesa da manutenção dos direitos dos povos quilombolas, lançou um movimento para chamar atenção contra a aprovação do AST, com a #AlcantaraÉQuilombola. Em nota, a Coalização lembra que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) exige a participação dos atingidos no debate sobre o acordo.

Pelo Twitter, parlamentares da oposição criticaram a forma como o governo Bolsonaro vem pautado a questão a despeitos dos direitos da população.  “Pela manutenção dos modos de vida quilombola do povo preto, dizemos não à entrega da base de Alcântara ao imperialismo estadunidense”, alerta a deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ). A deputada Luiza Erundina (Psol-SP) também confirmou sua posição contrário ao acordo.

A jornalista e professora Bianca Santana, autora do livro Vozes Insurgentes de Mulheres Negras destaca que “no plebiscito popular de 2002,  98,59% das pessoas votantes se manifestaram contra o acordo dos governos de Brasil e EUA que permite o uso da Base de Alcântara por militares norte-americanos”. Líder do Psol na Câmara, o deputado Ivan Valente (Psol-SP) disse à Agência Câmara Notícias, que o partido acionará o Supremo Tribunal Federal (STF) para que os quilombolas sejam consultados.