Só com o ITR

Ações de ruralistas causam perdas anuais de pelo menos R$ 1,5 bilhão para Amazônia

De olho na redução ou isenção do imposto sobre propriedade rural (ITR), fazendeiros maquiam valor de suas terras, interferem nas bases de cálculo e defendem nova legislação

Claudia Ferreira/Prefeitura de Boa Vista/RR
Claudia Ferreira/Prefeitura de Boa Vista/RR
Beneficiados com perdão de dívidas e subsídios tributários, fazendeiros querem também a isenção de imposto sobre propriedade rural

São Paulo – Os municípios dos nove estados que compõem a Amazônia Legal têm Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) inferior a 0,750 conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) referentes a 2017, divulgados em abril passado. O coeficiente reflete que a educação, a renda e a longevidade de suas populações têm de melhorar bastante para chegar perto da média nacional, de 0,778.

Chama atenção o fato de que esses mesmos municípios, que dependem de mais arrecadação para ampliar e melhorar sua oferta de serviços, poderiam ter arrecadado, no mesmo período, um total de R$ 1,5 bilhão com o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR). Um montante 18 vezes maior que o ofertado pelo grupo dos países mais ricos (G7) para ajudar o governo de Jair Bolsonaro enfrentar as queimadas na região.

Em vez disso, receberam apenas R$ 240 milhões. O R$ 1,26 bilhão que deixou de entrar no caixa das prefeituras poderia ajudar a financiar, por exemplo, políticas educacionais, como creches e pré-escolas. Ou até mesmo custear programas de manutenção das estradas rurais, como tem feito a prefeitura de Uruguaiana (RS).

Segundo pesquisadores do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), que fizeram os cálculos, todas essas perdas são causadas por ações de ruralistas. De olho na redução ou isenção do imposto sobre propriedade rural, fazendeiros maquiam valor de suas terras, interferem nas bases de cálculo ao pressionar governos e prefeituras e defendem mudanças na legislação, tornando-as ainda mais amigáveis aos seus interesses.

Maquiagem

Um dos artifícios mais usados por fazendeiros e agricultores para pagar menos ITR é maquiar o valor de suas propriedades. Segundo os pesquisadores, em 762 municípios os imóveis rurais são desvalorizados de tal forma que passam a valer, para fins de incidência do ITR, o correspondente a 10,5% do valor médio de mercado – que já está defasado.

Em municípios que fiscalizam o ITR, os valores declarados pelos proprietários corresponderam, em média, a apenas 14% do de mercado. A farra é ainda maior nos municípios que não fiscalizam: equivale a 6%. Assim, uma fazenda avaliada em R$ 1 milhão  assume o valor de R$ 60.000,00 para cálculo do imposto.

Criado para cobrar de posseiros e proprietários de terra rurais a contribuição para o financiamento de políticas públicas para o setor, como a reforma agrária, o imposto passou a ser repassado em sua totalidade aos municípios que abrigam esses imóveis desde 2003. Para isso é necessário que a prefeitura assine convênio com a União por meio da Secretaria Especial da Receita Federal. Os que não firmarem, ficam só com a metade.

O benefício, conquistado com muita pressão pelos prefeitos, é usufruído por parte deles, porém. Na Amazônia Legal, os 38% que assinaram o convênio aumentaram a arrecadação do ITR. O montante que era de R$ 17 milhões em 2000 subiu para os R$ 240 milhões em 2017.

No Mato Grosso, 93% dos municípios assinaram e contrataram assessoria para atualizar o Valor da Terra Nua (VTN) com base no valor de mercado. O VTN corresponde ao valor de mercado do imóvel rural, do qual são extraídos valores relativos a construções, instalações e benfeitorias, culturas permanentes e temporárias, pastagens cultivadas e melhoradas, e florestas plantadas.

Índice defasado

Outro fator que interfere negativamente na arrecadação do imposto é a defasagem do índice de produtividade da terra, que também entra no cálculo do imposto. O índice atual é baseado em dados de 1985, o que distorce o perfil de produtividade do imóvel.

De acordo com o índice utilizado atualmente, uma propriedade na Amazônia que tenha 0,5 cabeça de gado por hectare é considerada produtiva mesmo que esse índice esteja muito abaixo da média da região, de 1,9 cabeça por hectare segundo o IBGE.

A correção do índice de produtividade é responsabilidade do governo federal, que não tem resistido à forte pressão dos ruralistas contrários. Em 2009, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu atualizá-los, mas foi dissuadido por pressão de ruralistas.

Ana Aranha/Agência Pública

Enquanto os ruralistas querem cada vez mais benefícios, crianças da Amazônia têm escolas precárias

Prefeitos de municípios conveniados também são assediados. “A pressão dos ruralistas é para que corrijam o valor do VTN a patamar inferior ao de mercado. Um consultor contratado por prefeitura chegou a nos dizer que considera “um tiro no pé propor reajuste igual ao valor de mercado, pois seu trabalho tende a ser descontinuado pelos fazendeiros”, disse a pesquisadora Ritaumaria Pereira.

Além do lobby ruralista para frear a correção do ITR, falta articulação entre prefeituras e a Receita Federal para compartilhamento de dados, capacitação e estabelecimento de procedimentos – o que também prejudica a arrecadação do imposto.

Isenção como alvo

Com forte presença no Congresso, os ruralistas aproveitam para apresentar, desengavetar e aprovar Projetos de Lei (PL) para reduzir e isentar a cobrança do ITR. O PL 730/2003 isenta idosos do pagamento do ITR e o PL 5.473/2016 isenta áreas de florestas plantadas. O PL 7.250/2014, reapresentado em 2019 com o número 3488/2019) reduz, isenta e onera o imposto de acordo com o percentual de área produtiva dos imóveis. A oneração integral é prevista apenas para imóveis com área produtiva abaixo de 30% do imóvel. Dependendo da faixa, teriam descontos de 50%, 75% e isenção total para área produtiva superior a 90,01%. A julgar pelas interferências e manipulações, é de se esperar que a maioria se torne isenta caso este PL seja aprovado.

Farra ruralista

Reportagem da RBA publicada em outubro de 2017 mostrou que, em 2015, a arrecadação de ITR não chegou a R$ 1,3 bilhão em todo o país. Em números redondos, segundo a Receita Federal: R$ 1.232.506.706. De municípios onde o ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi tem fazendas, no Mato Grosso, vieram R$ 4,2 milhões de Campos Novos, e R$ 1,7 milhão de Rondonópolis.

No mesmo ano, Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, arrecadou R$ 290 milhões só com o IPTU. “O que se arrecada com ITR dá menos que multas de trânsito, muito menos que a receita total de uma cidade como Sorocaba, no interior paulista. Um montante irrisório”, disse na reportagem o defensor público do Estado de São Paulo em Santo André, Marcelo Novaes.

Conforme destacou, a agropecuária, que contribui pouco com a arrecadação, demanda grande parte de investimentos públicos com infraestrutura, como estradas, estrada de ferro, barragens, portos e pesquisas, como as da Embrapa. Fora a equalização de juros, perdão de dívidas e, principalmente, os subsídios tributários.

Segundo a Receita, em 2015 foram arrecadados no total R$ 826 bilhões em impostos, vindos de todos os setores da economia. O setor de agricultura, pecuária e relacionados contribuiu com R$ 1,92 bilhão, que corresponde a 0,23% do bolo. Um valor irrisório  quando só a agricultura corresponde a cerca de 25% da riqueza produzida no país.