Direitos das vítimas

Sociedade deve se organizar para cobrar Vale por danos coletivos

A magnitude da tragédia humana, animal e ambiental provocada pela Vale em Brumadinho (MG) abre margem para ampla participação popular na exigência de transparência, respeito à vida e aos ecossistemas do país

Ricardo Stuckert

Crime da Vale foi além da tragédia humana e impactou animais domésticos e silvestres. Sociedade deve se organizar para cobrar reparação

São Paulo – As tragédias causadas pelas atividades empresariais da Vale em Mariana e Brumadinho suscitam o seguinte debate: um documento de auditoria emitido por uma empresa privada, para outra empresa privada, é de interesse público? Quem levanta essa questão é o advogado ambiental e ex-secretário do Meio Ambiente do Distrito Federal, André Lima, para quem os resultados de auditorias que envolvam atividades de risco à natureza e vidas humanas devem ser transparentes, ao alcance da sociedade. Reduzir os custos ao limite é uma prática costumeira entre as empresas, assim como os lobbies mantidos com órgãos governamentais, explica Lima, enquanto que a sociedade civil permanece desprotegida.

A advogada e coordenadora do GAAV (Grupo de Advocacia Animalista Voluntária) de São Paulo, Letícia Filpi, alerta que, além das vidas humanas interrompidas e o sofrimento dos familiares, crimes pelos quais a Vale tem de ser responsabilizada, há também o direito dos animais e seu bem-estar. Vacas atoladas na lama e que precisavam de resgate foram abatidas a tiros pela Polícia Rodoviária Federal, um método menos oneroso para a empresa, explica Letícia. “Por negligência, a Vale colocou os animais naquela situação e agora estão atirando, o que configura crime de maus-tratos e responsabilização penal da empresa”.

A Lei de Crimes Ambientais nº 9.605/98 não estabelece dolo (quando há intenção de provocar o dano ou crime) ou culpa (sem intenção) e são de responsabilidade objetiva, ou seja, aconteceu o dano ou crime, a responsabilização é vinculada automaticamente aos envolvidos.

A biodiversidade afetada pela lama e seus efeitos a longo prazo, o desequilíbrio ecológico, as mortes e maus-tratos aos quais os animais foram submetidos configuram responsabilidade objetiva da Vale, pois foi a conduta da empresa que provocou o dano, inclusive do Ministério Público (MP) e seus promotores, caso nunca tenham ingressado com uma ação civil pública para tentar impedir a instalação das barragens em Brumadinho, explica a coordenadora do GAAV.

“Os crimes ambientais de Mariana e Brumadinho expõem as falhas no sistema de licenciamento ambiental, de monitoramento, auditoria e fiscalização”, afirma Lima. Segundo ele, o licenciamento não foi capaz de identificar e qualificar devidamente o risco, o monitoramento não detectou as falhas, a fiscalização não detectou nenhum tipo de irregularidade, e por fim, tem-se a auditoria, que deveria alertar a respeito dos riscos. “Caso a auditoria tenha alertado, a responsabilidade(da Vale) é mais grave”.

Se a auditoria detectou determinada falha e orientou na tomada de alguma medida, mas a empresa ignorou o alerta, pode caracterizar crime ou mesmo dolo eventual. “Não investir o recurso mínimo necessário para garantir a segurança nas empresas que operam em atividades de risco não significa que há intenção de matar, mas a mineradora poderia dimensionar que o risco é grande e a consequência seriam as mortes de pessoas”, afirma o ex-secretário de Meio Ambiente.

André Lima diz ainda que uma lei ambiental só é boa quando permite que mecanismos e ferramentas garantam que o que a lei estabelece seja de fato executada. Ele cita como exemplo a lei ambiental que proíbe o desmatamento ilegal. “Essa lei é boa? Depende. Qual ferramenta temos efetivamente para garantir que o desmatamento ilegal não aconteça, e se acontecer, que seja efetivamente punido? Se não temos as ferramentas para garantir a lei, essa lei não é boa”.

No caso do desmatamento ilegal, foi criado, em 2015, o Cadastro Rural – pelo Incra e Receita Federal – que consiste em uma foto de satélite que define os limites de propriedade e permite ao órgão ambiental fazer o monitoramento. O cadastro rural é uma ferramenta que viabiliza a aplicação da lei e foi possível, dessa forma, criar um embargo do uso da área desmatada ilegalmente e desestimular o desmatamento.

Para o ex-secretário de Meio Ambiente do DF, a legislação é boa quando “garante máxima transparência” que permita que a sociedade fiscalize o fiscalizador, monitore quem monitora, audite quem audita. “Existem centenas de barragens espalhadas pelo país e não temos transparência sobre cada uma delas, como foram os resultados das auditorias, os critérios adotados para definir os graus de risco e essa discussão precisa ser feita”.

Ressalta Lima que a legislação precisa garantir que órgãos independentes de controle, como o Ministério Público, os Tribunais de Contas, auditorias, controladorias e Organizações da Sociedade Civil de interesse público possam, por meio de ferramentas, serem informadas com transparência para acompanhar e cobrar dos órgãos responsáveis a fiscalização, monitoramento e auditorias adequadas. “As iniciativas populares são importantes e podem ser eficientes quando há de fato mobilização e discussão qualificada, de conteúdo, que não sejam simplesmente reivindicações pontuais, episódicas para um problema estruturante”.

No caso dos crimes que a Vale cometeu contra o ecossistema da região, e que se estenderá a outros locais, Letícia explica que há leis de proteção aos animais silvestres e que indenizações por estes crimes podem ser exigidas pela sociedade, alegando dano moral coletivo. Isso porque a morte de todos os animais e os danos ambientais que ocorreram em Brumadinho geraram uma comoção social.

Na esfera penal, só o Ministério Público pode denunciar os crimes ambientais e, se acatado pelo juiz, dá-se início ao processo penal.

Na esfera civil, ONGs, MP e órgãos da administração direta e indireta podem ingressar com ação civil pública para responsabilizar todos os envolvidos nos crimes ambientais. “O crime ambiental causa um dano e gera a responsabilidade civil. Essa responsabilidade civil decorre das atitudes dos dirigentes da mineradora ao deixarem a barragem se romper”, diz Letícia.

Na ação civil pública, o reflorestamento, a retirada da lama e projetos ambientais para recuperar a área podem ser exigidos, enquanto que na ação penal, a prisão, a interrupção das atividades, o fechamento da empresa são medidas previstas na Lei de Crimes Ambientais.

Ainda segundo Letícia, cada animal morto pela Vale, tanto os domésticos, quanto os silvestres, podem levar o promotor de Justiça a pedir indenização. “Para cada animal que a Vale matou é um crime com uma pena, que se somam. A empresa matou esses animais, não há dúvidas quanto a isso, existindo um nexo de causalidade entre a conduta e a morte. Se não fossem negligentes com a segurança da barragem, os animais não teriam morrido. E se há nexo de causalidade, há responsabilidade”, completa.

A Vale foi alertada pelo Ibama da possibilidade de rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em dezembro de 2018. E por terem sido alertados, a empresa foi negligente ao prosseguir com suas operações. “Não é possível que um ser humano, ciente de tudo o que poderia acontecer, ainda continuasse seguindo o mesmo caminho. A ganância cegou essas pessoas”, diz a coordenadora, referindo-se à diretoria da Vale.

Ela explica que as organizações não governamentais de proteção da causa animal e ambiental podem agir em conjunto para responsabilizar a mineradora por ação civil pública. Já o cidadão portador de título de eleitor pode se manifestar pela ação popular, com coleta de assinaturas, reivindicando a recomposição do meio ambiente, indenização por danos morais coletivos e danos materiais. “As penas aos culpados temos de aguardar as ações do Ministério Público, mas quanto aos danos ambientais na esfera civil, as ONGs podem entrar com ação civil pública e os cidadãos, com ações populares, no âmbito dos direitos difusos e coletivos”.

Ao completar uma semana, o desastre da reincidente Vale em Brumadinho (MG) se consolida nas primeiras posições entre os crimes ambientais que envolveram vítimas humanas e consequências incalculáveis ao meio ambiente. O primeiro grande crime da Vale, em Mariana (MG) matou o Rio Doce e desta vez, além do Rio Paraopeba, o São Francisco também será atingido, com impactos ainda desconhecidos.

* Cibele Buoro é jornalista. Foi repórter da Gazeta Mercantil, IstoÉ, Folha de S.Paulo e Fiesp. É professora de Jornalismo desde 2001

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