Tragédia

Atingidos pela lama da Samarco não têm lugar na reconstrução de suas vidas

Em Fórum Mundial da Água, diretor da Fundação Renova defende participação da população na restauração. Na prática, segundo o MPF, atingidos pelo desastre foram excluídos das decisões e sofrem assédio

Arquivo/MPF

Saldo da tragédia: 19 mortos, 41 cidades atingidas, 3 reservas indígenas afetadas, 14 toneladas de peixes mortos, traumas, doenças, falta de renda e exclusão

Brasília – Maior tragédia ambiental do planeta, o rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015, voltou ao centro do debate nesta semana na programação do 8º Fórum Mundial da Água, promovido pelo governo brasileiro com apoio de empresas como a Nestlé, Coca Cola e Ambev, diretamente interessadas no controle do mercado deste recurso natural no Brasil. E também do Fórum Alternativo Mundial da Água – Fama 2018, realizado por movimentos sociais e sindicais nacionais e estrangeiros, em contraponto ao evento oficial. Ambos foram sediados em Brasília.

No Fórum oficial, de caráter empresarial e comercial, realizado no Centro de Convenções Ulysses Guimarães e Estádio Mané Garrincha, não havia representantes de pessoas atingidas pelo desastre para contar seu drama trazido pela lama contaminada com metais tóxicos, que soterrou e matou 19 pessoas e 14 toneladas de peixes em seu trajeto pelo Rio Doce.

O caso foi tratado na perspectiva de tecnologias que estão sendo adotadas no monitoramento da qualidade da água. E dos “impactos nos recursos hídricos, com a discussão de propostas para restaurar a qualidade e quantidade de água, bem como na recuperação da qualidade de vida das comunidades afetadas”. Sempre na do governos, dos serviços hidrológicos, do comitê de bacia e da Fundação Renova, criada para conduzir a reparação dos danos.

Em sua participação, o diretor-presidente da Renova, Roberto Waack, destacou o modelo de governança elaborado para tentar equacionar as consequências do desastre. “Esse sistema não tem nenhum precedente no Brasil e acho que nem no mundo”, disse. E listou as diversas ações para recuperar a área atingida. “As ações envolvem várias frentes, como o manejo de rejeitos, a gestão hídrica para recuperar a qualidade da água, o trabalho para entender o impacto e como fazer a reparação da biodiversidade, bem como monitorar a qualidade da água ao longo do rio”, citou.

Segundo ele, são 92 unidades de monitoramento já instaladas e o desafio é traduzir os mais de 120 parâmetros de monitoramento que são coletados nesse processo e serve de base para avaliar a qualidade da água. Waack chegou a dizer ainda que “esse é processo de longo prazo e só pode ser construído em conjunto com a população no desenho, na execução e no monitoramento”.

A Renova foi fundada após a assinatura do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) entre a Samarco, empresa responsável pela barragem, e o poder público. Em linhas gerais, o sistema de governança funciona por meio de um comitê interfederativo, um conselho diretivo, um conselho consultivo, que traz a voz das pessoas que foram diretamente atingidas, academia e outros atores; além de órgãos de apoio, como o painel de especialistas, e a auditoria independente, que acompanha a realização das ações.

Participação zero

No entanto, procuradores da força tarefa Rio Doce, do Ministério Público Federal (MPF), mostram que a história não é bem como aquela contada por Waack aos participantes do Fórum oficial. A falta de participação social, aliás, é a razão pela qual o acordo assinado entre os governos estaduais, o federal e as empresas, que resultaram na criação na Fundação Renova, não tem apoio de procuradores do MPF e nem de promotores de Justiça de Minas Gerais e Espírito Santo.  

Conforme o integrante da força tarefa Rio Doce do MPF, procurador Paulo Paulo Henrique Camargos Trazzi, o acordo não prevê a participação social na solução dos problemas. “Além de ser um acordo que determina recursos insuficientes, é marcado pela falta de participação social. Nós questionamos na Justiça, emitimos notas para explanar essa situação. O acordo acabou não sendo homologado pela Justiça, já que o desembargador Antonio Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, acatou recurso para invalidar a homologação. Isso que significa dizer que esse TTAC, ilegal, vem sendo cumprido pelas empresas, pelos poderes e o MPF não o reconhece”, disse o procurador, em evento promovido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) no âmbito do Fama 2018.

Em maio de 2016, o MPF entrou com Ação Civil Pública cobrando reparação integral dos danos causados e calculou em R$ 155 bilhões o total de das indenizações a serem pagas, devido à complexidade dos danos ambientais e sociais a serem reparados, inclusive de saúde, que vem aumentando.

“A gente entende que a empresa tem de arcar com todas essas questões, inclusive ao que se refere aos danos causados pelo programa de reparação da Renova. Nós não negociamos direitos, negociamos procedimentos para fazer com esses direitos sejam alcançados. Há um termo aditivo ao acordo, discutido e aprovado pela sociedade civil, que prevê o protagonismo social dos atingidos no processo diagnóstico. E a gente só pode compreender, falar em participação social em qualquer negociação que seja se a população participar desde o início. Não dá para dar para os atingidos um acordo e dizer que tem participação social. Ela precisa ter inclusive a orientação de experts de sua confiança para exercer protagonismo no diagnóstico.”

Eufemismo

Outro integrante da força tarefa, o procurador Edmundo Antônio Dias Netto Júnior, vê com estranheza o fato de os entes federativos, União, governos estaduais, suas fundações e autarquias terem assinado acordo com as empresas Samarco e suas controladoras, a BHP e a Vale.

“Todos são réus na ação civil ajuizada no dia 2 de maio de 2016 pelo MPF e se sentaram à mesa para celebrar acordo chamado de  TTAC, sem homologação pela Justiça  pelo fato de não ter havido uma participação da população durante a negociação e nem tampouco os atingidos pelo desastre ter assento no conselho curador da Fundação Renova”.

O procurador, que considera iguais as dimensões ambiental e humana na tragédia, destacou a redução nos custos, tecnologias mais baratas e seu inevitável aumento dos riscos ao meio ambiente e criticou o que chama de uma “nova semântica”, em que desastre é evento, atingido é impactado, indenização emergencial é benefício.

“É a lógica do eufemismo. Evidente que o nome da fundação tem maximização semântica do significado pretendido. Renovar é verbo significa fazer ficar novo de novo, para melhor, substituir por mais novo. A gente perguntaria: o que está sendo mudado para melhor? O meio ambiente? A bacia do Rio doce? A vida das pessoas? As pessoas estão ficando doentes, segundo pesquisas. E em Barra Longa a Fundação colocou pedras enormes nas margens. A relação com o rio não é mais a mesma. É praticamente canalização do rio do Carmo. Essa é a reparação em Barra Longa que está ocorrendo”.

Netto Júnior destacou ainda que que a indenização mediada criada pela Renova tem regimento em conflito com a lei. Em seu artigo 26, determina que o ingresso do impactado no programa exige que ele se comprometa a não ajuizar demanda indenizatória durante a sua participação no programa de indenização mediada, e suspender a já ajuizada, o que viola princípios jurídicos.

“Outro requisito para o ingresso, ou seja, para que o atingido tenha acesso a um direito, que é a reparação, ele precisa renunciar ao direito de realizar outros pleitos indenizatórios pela ruptura da barragem do Fundão. E a gente sabe que o processo indenizatório cria novos danos. Nessa gramática criada pela Fundação Renova, cabe a ela dizer quem é atingido e a quem cabe reparar. Enfim, seriam vários questionamentos a serem mencionados. Eu queria apenas dizer um ponto crucial: esse acordo celebrado, com seu termo aditivo, previu que o trabalho de assessorias técnicas independentes aos atingidos em todas as territorialidades da Bacia do Rio doce. Trata-se de um fórum de observadores da sociedade civil, da academia, dos povos indígenas e demais sociedade seccionais e a realização de consultas previas aos povos tradicionais”.

No entanto, segundo ele, não é o que está acontecendo. Em visita à terra dos índios Tunipiniquim e Guarani, para conversa para a construção de um protocolo de consulta, foi informado pelos indígenas que uma consultoria, contratada pela Renova, havia estado com esses povos para ajudá-los na constituição de documentos. “Ou seja, até na construção de seu protocolo de consulta, de natureza política, que vai resultar em uma declaração sobre como querem ser reparados por esse desastre, o grupo está sendo submetido a assédio da Renova que por meio de uma consultoria escolhida, que não é a prevista no acordo”.