Risco ambiental

Cresce resistência ao projeto de Alckmin de retirar água de rio em Bertioga

Conselho Municipal de Meio Ambiente derruba autorização para a transposição das águas do rio Itapanhaú e reforça luta da comunidade. Apesar de ação civil pública, tucano quer iniciar obras em março

Prefeitura de Bertioga

O rio Itapanhaú nasce em Biritiba Mirim, no alto da serra do mar, e deságua no canal de Bertioga, litoral norte

São Paulo – Em sua corrida à Presidência da República, o pré-candidato e governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), quer mostrar serviço. E apagar de sua biografia o fantasma da crise hídrica que arranhou sua popularidade em 2014, quando os reservatórios chegaram a níveis críticos e o Sistema Cantareira teve de apelar a seu volume morto. Para isso, ele pretende retirar de 2 mil litros de água por segundo do rio Itapanhaú e transferir para o Sistema Produtor Alto Tietê, que abastece a capital e  a região metropolitana.

O investimento de R$ 91,7 milhões, segundo o governo, contempla a construção de um sistema de bombeamento no ribeirão Sertãozinho e extensa tubulação até o reservatório Biritiba-Mirim, que integra o Sistema Alto Tietê. O tucano pretende dar início às obras em março.

No entanto, o projeto eleitoreiro enfrenta resistência crescente no município. Em reunião ordinária nessa quinta-feira (25), o Conselho Comunitário de Defesa do Meio Ambiente (Condema) do município decidiu, por unanimidade, revogar o aval concedido ao projeto, o que pode brecar o processo de licenciamento em andamento na Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb).

A proposta de revogação partiu do presidente, o secretário municipal de Meio Ambiente, Marco Antonio de Godoi, em razão do descumprimento das condicionantes (leia destaque abaixo) impostas pela gestão municipal ao empreendimento. A medida visa ampliar o debate e as exigências, conseguir informações detalhadas sobre os riscos de danos ambientais, bem como das medidas mitigadoras. 

Em seu perfil nas redes sociais, o prefeito Caio Matheus (PSDB), comemorou a decisão e anunciou que buscará o diálogo com Alckmin “em favor da preservação do rio”. Está prevista para o início da tarde de hoje (27) manifestação a partir das 14h, na ponte do rio Itapanhaú. Além de passeata, haverá cortejo seguido por barcos turísticos, de pesca e caiaques. Na próxima terça-feira (30), a manifestação será defronte à sede da Cetesb, no bairro de Pinheiros, na capital.

Mudanças climáticas

De acordo com ambientalistas e ativistas do Movimento Salvem o Rio Itapanhaú, a retirada de até 216 milhões de litros por dia, que corresponde a 10% de sua vazão, não foi avaliada adequadamente quanto aos seus impactos. Segundo eles, em comunicado oficial, o projeto não tem aval do Instituto Geológico e desconsidera, entre outras coisas, os efeitos das mudanças climáticas na área e alterações do nível do mar, que tende a se elevar a uma taxa de 0,45 cm/ano nas próximas décadas. Sem contar que mudanças na vazão do rio, mesmo que sutis, mas por tempo prolongado, poderão prejudicar os manguezais, a fauna, a flora e a vida na região.

“Enquanto prepara-se para atacar mortalmente o Itapanhaú, a Sabesp, segundo dados do Instituto Trata Brasil desperdiça em torno de 36% da água distribuída na região da Grande São Paulo em função da má manutenção da rede, o que significa algo em torno de 1,26 bilhão de litros por dia (contra os 216 milhões de litros que pretende retirar do rio)”, afirmam os ativistas no documento.

Reprodução
Trecho da autorização da prefeitura de Bertioga com destaque para suas condições

 

 Velocidade

No começo do mês, a Cetesb aprovou a licença prévia para realização das obras pela Sabesp, que foi ratificada pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). Trata-se de um passo importante no processo de licenciamento que está sendo questionado na Justiça por uma ação civil pública (ACP) protocolada em abril, pela promotora Almachia Zwarg Acerbi, do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema) de Santos.

Além da proibição da obra até que haja um novo estudo e relatório de impacto ambiental, realizados com os devidos rigores, ela pede a anulação dos estudos atuais, que estão embasando o processo de licenciamento ambiental pela Cetesb, bem como o licenciamento em si.

O Tribunal de Justiça (TJ) chegou a conceder liminar, que foi cassada em maio. Com a nova decisão, o TJ permitiu o prosseguimento do licenciamento da obra, o que permitiu a abertura de licitação para a escolha da empreiteira.

A expectativa é que o mérito da ACP seja julgado no início de fevereiro. Clique aqui para ler na íntegra a ação protocolada pelo Gaema de Santos.

“O rio Itapanhaú não é uma torneira que possa ser aberta para encher o balde alheio sem prejudicar a população local e o meio ambiente legalmente protegido de quaisquer obras de barragens, hidrelétricas, de controle de enchentes, de retificação de leitos, de alteração de margens e outras atividades que possam alterar suas condições hídricas naturais”, pontua a promotora Almachia Zwarg Acerbi na petição.

Em sua defesa da proibição da obra, ela argumenta que faltam estudos e análises dos efeitos dessa obra sobre as unidades de conservação atingidas e evoca o princípio da precaução, do qual o Brasil é signatário, para não permitir o dano e, só depois, analisar seus impactos e eventuais ações de remediações.

Ela reconhece a importância de se garantir o suprimento de água para parte da Região Metropolitana de São Paulo, mas entende que isso seja feito com critério e com base em estudos que efetivamente permitam a avaliação dos impactos ao meio ambiente. E chama atenção para a urgência com que todo o empreendimento e seu licenciamento estão sendo tratados pela Cetesb e pela Sabesp, bem como para a falta de informações suficientes sobre a área de influência do empreendimento.

Almachia menciona um laudo emitido pela Fundação Florestal (FF), segundo o qual a instrução do licenciamento ambiental não demonstrou e nem comprovou a viabilidade ambiental – daí a licença prévia ter sido indevidamente emitida.

Conforme a promotora, o projeto foi concebido na década de 1960, com Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) feitos em um cenário diferente do atual, em que se projetavam elevadas e crescentes demandas de água para a RMSP, com restrições ambientais insuficientes para proteção dos mananciais. Era uma época em que ainda nem havia sido criado o Parque Estadual da Serra do Mar, que tem a finalidade de proteger a flora, a fauna, as belezas naturais em uma perspectiva educacional, recreativa e científica.

Insuficiência

A integrante do Gaema da Baixada Santista chama atenção também para a velocidade com que o projeto vem tramitando. Analisado pelas câmaras temáticas do Comitê de Bacias, o projeto que deveria ter sido discutido pelo plenário, em fevereiro de 2016, obteve um parecer contrário da Fundação Florestal “em face da insuficiência de informações ambientais imprescindíveis para sustentar a previsão de impactos do EIA, como também da falta de propostas de ações mitigadoras para muitas das alterações previstas pelo próprio empreendedor”.

Isso porque deixa de cumprir seu objetivo de avaliar as consequências ambientais da realização das obras, nos termos do projeto, para as Unidades de Conservação afetadas – principalmente para o Parque Estadual da Restinga de Bertioga e para a APA marinha do Litoral Centro.

A Fundação Florestal, segundo a petição de Almachia, instituiu então um grupo de trabalho específico para dar continuidade à análise, o qual, no entanto, não apresentou nenhum relatório.

O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat) também emitiu parecer sobre a EIA/RIMA apresentados pela Sabesp, no qual aponta deficiências, como a ausência da devida avaliação de impactos negativos, de previsão de monitoramento e de medidas mitigadoras para vários deles. Entre os questionamentos está a situação crítica de abastecimento público da Baixada Santista.

Mesmo assim, esses estudos da Sabesp tramitaram com rapidez e obtiveram parecer favorável da direção executiva da Fundação Florestal, determinante para a emissão de licença prévia emitida apesar das graves falhas de fundamentação que têm embasado as críticas da população que participou de apenas uma audiência pública, em 2015.

Estudo de impacto

“Se levarmos em conta a importância dos ecossistemas existentes na foz do Rio Itapanhaú e suas dinâmicas ecológicas, eu diria que teríamos efeitos negativos que extrapolam os danos iniciais durante o chamado período de instalação de empreendimento onde ocorreriam a alteração das características do canal principal e a remoção da vegetação”, afirma o professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Marcos Pedlowski.

Géografo e especialista em estudos de impacto ambiental, ele afirma que o que mais chama a atenção nesse caso é a “subestimativa do possível processo de salinização” que deveria ocorrer em função da remoção de água daquele ecossistema via o processo de transposição.

“Uma característica peculiar da maioria dos estudos de impacto ambiental é que, mesmo em se prevendo corretamente os impactos potenciais que uma dada obra pode causar, há sempre uma negligência em relação ao estabelecimento de medidas de proteção que devem ser aplicadas quando os primeiros impactos são observados”, diz.

O mais lamentável, segundo ele, é que, “em nome de determinados objetivos pontuais, a maioria dos governantes termina impondo uma visão minimalista em relação à importância socioecológica das áreas impactadas e acerca dos impactos que os próprios estudos realizados para obter as licenças ambientais apontam.” 

O especialista lamenta ainda que os governos negligenciem estratégias que compatibilizem crescimento econômico e sustentabilidade ambiental. “Assim, a transposição do Rio Itapanhaú acaba sendo um ponto fora da curva, pois os casos em que a Justiça se posiciona de forma a proteger ecossistemas e as comunidades que dependem de sua integridade ecológica podem ser contados no dedo”.

Sua expectativa é a de que, dada a postura tecnicamente robusta do Ministério Público, a Sabesp e a Cetesb acabem sendo obrigadas a agir de forma mais responsável em relação ao projeto cuja necessidade não estaria nem em questão se outras medidas de melhoria do sistema de captação e distribuição do sistema já implantado tivessem sido adotadas.

No entanto, ele chama atenção para o que normalmente acontece em termos de tratamento jurídico para questões ambientais. “Geralmente se coloca o trator em outro tribunal, onde um juiz, desembargador ou até um ministro do Supremo Tribunal Federal passe ao largo das obviedades técnicas demonstradas para impedir um dada obra e opte por decisões que afrontam a lógica e os interesses coletivos. Eu não me surpreenderei nem um pouco se isso acontecer no caso da transposição. Mas sinceramente espero estar errado, pois penso que este caso pode abrir um precedente positivo no sentido de que a sociedade brasileiro opte por evoluir concretamente na proteção de nossos ecossistemas naturais e dos serviços ambientais estratégicos que eles prestam.”

A transposição das águas do Itapanhaú é tema da pauta da próxima reunião do Coletivo das Entidades Ambientalistas cadastradas no Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), nesta segunda-feira (29). O encontro será na sede do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).