Conflito de interesses

Para limpar imagem, indústria do agrotóxico se une ao Ibama em pesquisa com abelhas

Bayer, Basf e Syngenta, associadas à mortandade das polinizadoras, querem financiar estudos. Ministério Público Federal contesta: poderá haver manipulação e influência em novas regras para o setor

Arquivo/Ibama

Mais do que produzir mel, abelhas são fundamentais na polinização de mais de 70% das culturas agrícolas e de espécimes da flora, desempenhando papel importante na preservação das matas e floresta

São Paulo – Em todo o mundo, colmeias de diferentes espécies de abelhas estão desaparecendo. Para os cientistas, são diversas as causas. Mas os agrotóxicos são a principal. E os transgênicos, produzidos pelas mesmas empresas, começam a ser associados a essa mortandade, que compromete não só a produção de mel como a agricultura como um todo, a preservação das florestas e da biodiversidade. Afinal, as abelhas são fundamentais na polinização de mais de 70% das culturas agrícolas e da flora.

Na tentativa de limpar sua imagem, cada vez mais manchada em todo o mundo em meio a processos na Justiça e desvalorização de suas marcas, os fabricantes investem em estudos em parceria com instituições respeitadas.

No Brasil não é diferente. Por aqui, a nata da chamada indústria do veneno se juntou a outros setores do agronegócio e a sindicatos patronais, criando a Associação Brasileira de Estudos das Abelhas (A.B.E.L.H.A).

Além da Bayer (que está comprando a Monsanto), Basf e Syngenta, participam da entidade diversas associações representativas do agronegócio, como a Brasileira do Agronegócio (Abag), Nacional de Defesa Vegetal (Andef), dos Produtores de Soja e Milho do Estado do Mato Grosso (Aprosoja/MT), Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas), Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), além da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), União da Indústria de Cana de Açúcar (Unica), Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindveg) e Aprosoja Brasil. 

No final de novembro, a entidade, juntamente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) lançou edital que oferece apoio financeiro a pesquisas sobre o tema.

Serão destinados R$ 2,8 milhões para as propostas contempladas. E a maioria dos recursos virá do setor privado. A A.B.E.L.H.A investirá R$ 1,9 milhão, enquanto que o CNPq, MCTIC e Ibama injetarão R$ 300 mil cada um. 

O objetivo, segundo a chamada, é produzir conhecimento científico sobre insetos polinizadores para aplicação direta no desenvolvimento de metodologias de avaliação de risco de agrotóxicos, na valoração do serviço ambiental de polinização prestado por insetos para o aumento da produtividade agrícola e no conhecimento da biodiversidade destes polinizadores no Brasil.

Entretanto, para os procuradores da 4ª Câmara de Meio Ambiente do Ministério Público Federal, os objetivos podem ir bem além desses. Afinal, o edital fala, entre outras coisas, em produção de conhecimento a ser usados em uma revisão do Manual de Avaliação de Risco Ambiental de Agrotóxicos para Abelhas. O documento é a principal diretriz da políticas de proteção e de fiscalização.

Ou seja, eles temem que essas pesquisas, pagas em sua maioria pela indústria, sejam manipuladas e que seus resultados, eventualmente adulterados, venham a embasar diretrizes para o setor. Na prática, a situação das abelhas, que já é crítica, pode se agravar mais ainda.

Para tentar barrar o avanço da proposta, os procuradores mandaram ao CNPq ofício de impugnação. O documento não tem o poder de sustar o edital, mas é um instrumento para questionamento formal, que antecede outras medidas administrativas e até jurídicas para derrubá-lo.

“O que nos chama atenção é que há a possibilidade desses estudos, pago em sua maior parte por recursos do setor privado interessado, que constituem a A.B.E.L.H.A, virem a ser usados em uma revisão do Manual de Avaliação de Risco Ambiental de Agrotóxicos para Abelhas. O custeio por empresas privadas, entidades sindicais patronais que constituam possíveis alvos da regulação e consequente fiscalização acarreta óbice intransponível à celebração da parceria em fomento”, disse à RBA o coordenador do GT Agrotóxicos e Transgênicos do MPF, o procurador Marco Antonio Delfino de Almeida.

De acordo com o procurador, o edital fere o artigo 40 da Lei nº 13.019/2014, que veta a celebração de parcerias que tenham por objeto, envolvam ou incluam, direta ou indiretamente, delegação das funções de regulação, de fiscalização, de exercício do poder de polícia ou de outras atividades exclusivas do Poder Público (clique aqui para ler o ofício do MPF).

Procurados pela reportagem, o CNPq e o Ibama não se manifestaram até o término da edição.

Mais mortes

O edital é duramente criticado também por especialistas ouvidos pela reportagem. A principal crítica endossa as desconfianças do Ministério Público Federal: o conflito de interesses manifesto no financiamento de pesquisas que podem influir nas normas para regulação e fiscalização do setor.

No Brasil, a Basf, Bayer e Syngenta se destacam na produção de insumos químicos para o solo, agrotóxicos e outros produtos voltados à agricultura em geral e ao reflorestamento, especialmente eucalipto. A árvore nativa da Austrália, associada à desidratação dos solos brasileiros, usada principalmente na produção de celulose, é também a planta mais atraente para as abelhas. “A flor do eucalipto produz o néctar do qual elas se alimentam e com o qual vão produzir o mel”, disse uma fonte.

Entre os agrotóxicos produzidos por essas indústrias estão os neonicotinoides, substâncias consideradas mortais às abelhas conforme estudos realizados em diversos países.

No final de junho, a revista científica Science divulgou pesquisa cuja conclusão é que agrotóxicos à base de nicotina – os neonicotinoides – são prejudiciais à reprodução e à vida das abelhas (acesse o texto, em inglês, clicando aqui).

Realizada em uma área total de 2 mil hectares do Reino Unido, Hungria e Alemanha, o estudo expôs um grupo de abelhas aos neonicotinoides, e outro grupo a campos livres de agrotóxicos. Na Hungria, o número de colônias que sobreviveu foi 24% menor nos campos expostos aos venenos. Na Alemanha, os efeitos não foram tão nocivos, o que poderia ser explicado pelas condições de saúde das colônias. Conforme pesquisadores, apenas 10% da dieta das abelhas alemãs contém plantas tratadas com esses produtos, enquanto na Hungria e no Reino Unido essa taxa ultrapassa 50%.

Os especialistas ouvidos destacam ainda que, além dos agrotóxicos, o pólen de plantas transgênicas como o milho, a soja e o algodão – produzidas por essas mesmas empresas parceiras dos órgãos públicos no edital – também são nefastas. “Esse pólen, que faz parte da alimentação das abelhas, fica impregnado nas colmeias, contaminando o mel, e trazendo riscos à saúde das abelhas e dos consumidores. A situação tende a ficar ainda mais grave com as novas plantas geneticamente modificadas, como a laranja, cujos testes foram autorizados pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio)”.