Segurança alimentar

Hortas urbanas produzem 20% dos alimentos consumidos no mundo

Prática tão antiga quanto a existência das cidades, a agricultura urbana tem atraído cada vez mais adeptos, misturando ativismo, educação, saúde e preservação ambiental

Reprodução Facebook

Criada em 2012, a Horta das Corujas foi a primeira em praça pública na cidade de São Paulo

São Paulo – Uns acham que é “modinha”, outros que é “coisa de hippie“. O que a maioria desconhece, entretanto, é que as hortas urbanas são responsáveis por entre 15% e 20% de todo o alimento produzido no mundo e reúnem, atualmente, em torno de 800 milhões de agricultores urbanos no mundo, boa parte deles profissionais, segundo o estudo Estado do Mundo – Inovações que Nutrem o Planeta, da Worldwatch Institute (WWI), instituto de pesquisa sobre questões ambientais, publicado em 2011.

Em São Paulo, as hortas urbanas começaram a ter alguma visibilidade no meio acadêmico e despertar interessa da mídia – e de parte da população – a partir de 2004, época em que a ONG Cidades sem Fome começou a atuar na cidade e incentivar tal prática. O movimento de agricultura urbana na maior metrópole do país cresceu ainda mais em 2011, com a criação do grupo Hortelões Urbanos, que nasceu com o objetivo de “reunir pessoas interessadas em trocar experiências pessoais sobre plantio orgânico doméstico de alimentos e inspirar a formação de hortas comunitárias”. Atualmente, o grupo tem quase 65 mil membros no Facebook.

No ano seguinte, em 2012, nascia a Horta das Corujas, na praça Dolores Ibarruri, Vila Madalena, zona oeste da capital paulista, a primeira horta urbana feita em praça pública na cidade, criada por um público predominantemente de classe média e sem ligação anterior com a lida do campo. Apesar da novidade, Claudia Visoni, uma das fundadoras da horta, salienta que a prática da agricultura urbana é tão antiga quanto à própria civilização. “A gente não consegue um ponto inicial porque esse ponto inicial tem 10 mil anos”, afirma, destacando ser um conceito errado associar agricultura apenas ao ambiente do campo.

“A gente aprende errado na escola, porque a agricultura é irmã gêmea da urbanidade, as duas nasceram no mesmo dia. O dia em que o homem resolveu criar a primeira aldeia foi também o dia em que ele fez a primeira semeadura. Não existe uma coisa sem a outra, antes disso éramos caçadores-coletores, há dez mil anos. Não existe cidade sem agricultura, nem agricultura sem cidade, essa dicotomia é falsa, é inclusive ideológica e conveniente para o sistema agroindustrial”, explica Claudia Visoni, jornalista, ambientalista e agricultora urbana.

Segundo ela, existem entre 15 e 20 hortas urbanas ativas na cidade de São Paulo, algumas bem antigas, como a horta comunitária da Vila Nanci, na zona leste, há 30 anos. “Horta é uma coisa viva. Se deixar de ir 15 dias ou um mês, acabou a horta”, diz, explicando ser esse um fator da dificuldade de se mapear as hortas urbanas de São Paulo. Entre as hortas ativas da cidade, além das Corujas, ela cita a horta da Saúde, a horta do Centro Cultural São Paulo, a da City Lapa, da Faculdade de Medicina da USP, a Hora da Horta, entre outras.

Saúde e economia

A Horta das Corujas, assim como outras hortas urbanas de São Paulo, tem como característica a presença de pessoas nascidas e criadas em meio ao asfalto da cidade grande, sem ligação anterior com o trabalho na terra. Um movimento invertido de cidadãos que decidem adotar, nem que seja por algumas horas da semana, hábitos e práticas associadas ao meio rural, ao contrário do tradicional fluxo de pessoas que saem do campo e migram para a cidade.

“Temos pessoas que não têm experiência camponesa de infância, que cresceram no asfalto e hoje estão se tornando agricultores, isso é novidade, pois antigamente todo mundo que era agricultor vinha de família de agricultores”, explica Claudia Visoni, ela mesma tendo crescido sem contato com a terra. “Fui conhecer como é a folha de um tomateiro há oito anos.”

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Claudia Visoni foi criada sem ligação direta com a terra e tornou-se agricultora urbana

Na Horta das Corujas, um espaço de 800 m², Claudia diz que os voluntários frequentes são poucos, mas que não consegue dimensionar quantos já passaram por lá e “deram uma trabalhadinha”. Os visitantes, por sua vez, veem de todas as partes da cidade e podem colher livremente os alimentos ali cultivados. “Aparece desde vizinho até gente que cruzou a cidade pra conhecer ou que vai levar o filho pra passear. A gente planta pra cidade, não precisa ter trabalhado na horta. É espaço público, qualquer um pode colher o que quiser”, afirma.

Ao contrário da ideia padrão de haver alface, tomate e cenoura, a ambientalista explica que, em plena Vila Madalena, plantas raras e não-convencionais também são cultivadas na horta, como taioba, ora-pro-nobis, almeirão roxo, bertalha, serralha, sabugueiro e caruru. “Fomos colonizados pelo varejo e o agronegócio pra comer o que interessa pra eles, então um dos problemas que temos é que as pessoas não reconhecem esses alimentos como comida”, enfatiza. Como consequência, ela brinca, há pessoas que chegam para conhecer a horta e exclamam que tem “muito mato”.

A prática da agricultura urbana é hoje uma atividade incentivada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (ONU/FAO) como estratégia de aumento da resiliência das cidades e adaptação às mudanças climáticas, além de ser um importante elemento na segurança alimentar da população. O estudo Estado do Mundo – Inovações que Nutrem o Planeta, publicado pela Worldwatch Institute (WWI), estima que dentre as 800 milhões de pessoas no mundo que se dedicam à agricultura urbana, 200 milhões produzem alimentos para vender nos mercados e empregam até 150 milhões de pessoas. Segundo o estudo, calcula-se que até 2020, entre 35 e 40 milhões de africanos que vivem nas cidades “dependerão da agricultura urbana para suprir suas necessidades alimentares”. Na prática, isso pode representar até 40% da ingestão diária recomendada de calorias e 30% das necessidades de proteínas.

“O cultivo de alimentos em cidades tem algumas vantagens em relação à agricultura rural, como proximidade dos mercados, baixo custo do transporte e redução de perdas pós-colheita, graças ao menor tempo entre as colheitas. Em períodos de turbulência ou instabilidade, a agricultura urbana sempre mantém as pessoas alimentadas quando o fornecimento de alimentos do campo é interrompido”, afirma o estudo publicado em 2011.

A história da agricultura urbana é longa e sempre esteve relacionada ao aumento da segurança alimentar e o combate à fome, principalmente em épocas de guerras e conflitos. A publicação da WWI mostra que pesquisas realizadas em 24 cidades da África e da Ásia, no final dos anos de 1990, revelaram que “famílias pobres que praticavam a agricultura urbana faziam mais refeições e tinham uma dieta mais balanceada do que as outras pessoas”. Em Kampala, capital de Uganda, dados da década de 1990 indicam que as crianças de famílias agricultoras eram mais bem nutridas do que aquelas que não pertenciam a famílias agricultoras.

“As cidades estão se tornando centros de intervenções de desenvolvimento e estratégias de planejamento destinadas a combater a fome, a pobreza e a desigualdade para promover a sustentabilidade. A agricultura urbana na África subsaariana é uma parte importantíssima desse movimento, pois oferece maneiras de atender às necessidades prementes da região, como segurança alimentar, geração de renda, fortalecimento de comunidades, descarte de resíduos e a condição das mulheres”, afirma trecho do estudo Estado do Mundo – Inovações que Nutrem o Planeta.

Guerrilha verde

As hortas urbanas acabaram virando dissertação de mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) pelas mãos do geógrafo Gustavo Nagib, sob o título Agricultura urbana como ativismo na cidade de São Paulo: o caso da Horta das Corujas. Para o autor, o exemplo na Vila Madalena tem as características de uma horta ativista, cuja origem conceitual remete a contracultura nascida nos Estados Unidos no final dos anos de 1960 e começo de 1970, e que se batizou de guerrilla gardening ou, numa tradução livre, horticultura de guerrilha ou guerrilha verde.

“São iniciativas que não têm nada a ver com violência, mas ocupam o espaço público ou privado sem prévia permissão. Existia já naquele tempo todo um discurso de reapropriação do espaço público, de se livrar da ‘comida de plástico’, do fast-food, cheia de agrotóxicos, algo ligado ao movimento de produtos orgânicos nos Estados Unidos e o discurso de aproximar produção e consumo, autoprodução, trabalho comunitário, isso seria algo revolucionário para os ativistas da contracultura”, explica Gustavo Nagib.

Para ele, embora os processos de criação das hortas urbanas de São Paulo sejam próprios, as conexões com o movimento da contracultura estão presentes, mesmo que não ocupem, necessariamente, espaços públicos ou privados sem autorização. Entre as características da horta ativista, Nagib enfatiza a ausência de interesse comercial e a não existência de preocupação de subsistência.

“As hortas que se manifestam em espaço público você não pode comercializar o que está ali. No caso da Horta das Corujas, pelo contrário, está aberto pra quem quiser frequentar e pertence ao espaço público. A finalidade dela é muito mais de educação, de reeducação com o espaço público, de educação ambiental e de discutir uma série de temas que são propostos em oficinas e mutirões do que qualquer coisa que passe pela via de comercializar. Também não tem a preocupação da subsistência. Ninguém está sobrevivendo ou retirando uma parte considerável da sua sobrevivência daquela horta, então essa expressão de agricultura urbana ativista surge daí”, explica.

Apesar de muitas vezes seus frequentadores não terem a consciência dessa ocupação do espaço público, Gustavo Nagib diz que muitas hortas urbanas da cidade são iniciativas que, por não terem como base a subsistência ou a geração de renda, visam “propor uma nova visão de cidade, de como se pensar e usar seus espaços”.

Ao longo da pesquisa de mestrado, o geógrafo disse ter descoberto relações que vão muito além do gesto de plantar e colher um alimento livre de agrotóxico em plena área urbana. “Descobri uma séria de coisas relacionadas a uma horta comunitária que não esperava encontrar. Porque você fala: ‘ah…mas é só uma horta’, só que nessa hortinha tem milhares de coisas acontecendo, como o cultivo de plantas não-convencionais, abelhas sem ferrão fazendo a polinização, toda a relação das águas urbanas, já que o tratamento que demos aos nossos córregos urbanos é vergonhoso”, afirma, lembrando que a parte aberta do córrego das Corujas é um dos poucos contemplados pelo programa Córrego Limpo, parceria entre a Prefeitura de São Paulo e o Governo do Estado. “É raríssimo encontrar córregos abertos em áreas urbanizadas e limpos, com peixinhos e toda a segurança ambiental necessária”, destaca.

Para ele, a partir de um gesto que pode parecer tão inocente, como o de produzir uma horta urbana, surgem outras questões que enriquecem todo o processo. Ou, como disse Claudia Visoni, muita mais do que só “modinha” ou “coisa de hippie”.  

 

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