um ano de tragédia

As mazelas dos atingidos de Mariana em meio à impunidade

Problemas físicos, psíquicos e sociais traçam a nova rotina dos moradores de Bento Rodrigues, município mineiro atingido pelo rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco

Leandro Taques/MAB

As marcas da qualidade da água refletem no desequilíbrio ambiental e na morte dos organismos do rio

São Paulo – Um ano após o crime ambiental da mineradora Samarco, as marcas do rompimento da barragem de Fundão no subdistrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), permanecem na vida das vítimas. A falta da antiga rotina, o preconceito por parte da nova vizinhança, o descaso do Estado e a ausência de perspectivas são a realidade das 300 famílias que perderam tudo – ou quase – no 5 de novembro de 2015.

Realocados em Mariana, os atingidos estão acomodados em casas alugadas pela mineradora. Expostos à poeira dos rejeitos, apresentam problemas de pele, de queda de cabelos, respiratórios e psicológicos. Em meio a casos de depressão, uma tentativa de suicídio foi registrada.

Nas escolas da região, as crianças atingidas enfrentam a discriminação. Os “pés de lama” – assim apelidados pelos moradores de Mariana – não são vistos como vítimas, mas como culpados, principalmente, pela crise econômica na cidade. Atualmente, a taxa de desemprego de Mariana é de 25%, e a economia está fragilizada pela paralisação da mineradora, principal agente econômico da região.

“Uma parcela dos moradores diz que os atingidos não tem que estar ali. Isso cria marcas graves nas pessoas, principalmente, nas crianças”, diz o coordenador estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Thiago Alves.

Em Barra Longa, a 70 quilômetros de Mariana, a cidade também atingida pela lama foi transformada em canteiro de obras para reparação dos estragos causados, e a poeira castiga a população.

Em entrevista ao Brasil de Fato, uma das vítimas com grande impacto na saúde é a jovem Anna Clara Oliveira Coelho, de 4 anos. Filha de Edvania de Oliveira e José Eduardo Coelho, Anna Clara presenciou a casa sendo invadida pela lama.

Poucos meses depois da tragédia, a garota começou a apresentar sintomas de depressão, problemas respiratórios e manchas na pele. “Acho que o principal problema da Anna Clara foi por ficar aqui em cima e ver o tanto de lama que tinha”, relata a mãe. “Criança também tem disso né, todo mundo falando, nervoso, com medo danado, e ela ouvindo tudo isso. Acho que para a criança é um trauma bem grande”, complementa José Eduardo.

O acompanhamento psicológico de Anna Clara está sendo realizado desde janeiro pela psicóloga Luiza Laura Lanna, no Sistema Único de Saúde (SUS). No relato do acompanhamento, ela sinaliza que a paciente está sempre assustada e dizendo que vai mudar para outra cidade. “Anna Clara deve continuar o tratamento até que consiga se livrar do trauma”, diz.

Para o pai da criança, há, por parte da Samarco, uma negligência em relação a esse tipo de problema dos moradores de Barra Longa. “Entregar a cidade bonitinha, com gramado, com flores é importante? É importante! Mas e a saúde daqui pra frente? […] A Samarco não considera que os problemas de saúde estão sendo por causa dos rejeitos da lama”, desabafa.

Os pescadores também sofrem porque não têm mais como trabalhar. “A pesca é uma das principais atividades econômicas da região, mas a insegurança com a qualidade da água cria uma situação instável e preocupante”, diz Thiago Alvez.

Segundo o laudo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a contaminação dos peixes do Rio Doce está 140 vezes maior do que o permitido pela legislação brasileira. O nível de chumbo está cinco vezes acima do permitido.

Brasil de Fato o pescador Fábio Carlos Batista, morador de Mascarenhas-MG – outra região afetada pelo rompimento da barragem –, diz que não acreditava que a lama chegaria ao Rio Doce. Ao ver a situação, Fábio afirma que a situação foi de desespero. “Você sabe que o rio tá contaminado, se vê os peixes pulando. Dá vontade de chorar ao ver um negócio desse, porque se você visse como essas águas eram ricas em peixes, mas, hoje, não poder pegar nada é difícil.”

A Samarco diz que estuda a possibilidade de colocar os pescadores em cursos para inseri-los no mercado de trabalho. “Isso é uma falácia, porque jogar os pescadores, culturalmente adaptados a outro contexto, em um mercado de trabalho em crise é um absurdo. Você tira a renda deles e joga no mercado de trabalho”, critica Thiago Alvez.

Para auxiliar as famílias que perderam a renda, a Samarco distribuiu cartões de auxílio financeiro, através de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado com o Ministério Público do Trabalho (MPT) de Minas Gerais e do Espirito Santo. O valor é de um salário mínimo para cada pessoa que teve a renda afetada, com um adicional de 20% para cada membro dependente na família.

Fábio diz que trocaria o dinheiro da mineradora por continuar seu trabalho na pesca. “O pescador ganhava em média R$ 2,5 mil, R$ 3 mil por mês, e o cartão hoje é de R$ 1.300a R$ 1.500. Só que uma compra no mercado não fica menos de R$ 800”, relata.

O meio ambiente

Apesar de a água do Rio Doce estar mais limpa, há muita matéria orgânica no rio. “Isso se deve à seca, que diminui o fluxo e o material assenta no fundo do rio”, explica o biólogo e idealizador do Grupo Independente para Avaliação do Impacto Ambiental (Giaia), Dante Pavan: “O excesso de plâncton, por exemplo, mostra que o ecossistema não está funcionando bem”, diz.

As marcas da qualidade da água refletem no desequilíbrio ambiental e na morte dos organismos do rio. É elevado o índice de mortalidade de peixes, camarões. “Esses organismos foram se decompor no rio. Só essa decomposição mudou a caraterística da água, porque substâncias foram liberadas em larga escala”, conta o biólogo.

Para o MAB, não cabe à Samarco determinar o processo de recuperação. “Uns meses atrás eles fizeram um plantio de leguminosas, que nascem e morrem rápido, para fertilizar o solo. Foi um teste. Eles chamaram isso de revegetação, o que tecnicamente está incorreto. Não é revegetação”, afirma Thiago.

Além da água, o solo está contaminado e a fauna da região foi devastada pela avalanche de rejeitos. Algumas espécies animais podem desaparecer da região, como a anta, onça parda e a jaguatirica.

Isis Medeiros/MAB
Área a ser alagada corresponde a 55 propriedades e atingue patrimônios culturais como a Estrada Real

Bomba-relógio

No mês de setembro, o governo de Minas Gerais decretou que a Samarco construa um novo dique em Bento Rodrigues (dique S4) para estocar mais rejeitos. Segundo o MAB, a obra tornará inviável a reconstrução memorial do município. “Bento estará inviabilizado para sempre. Aquela terra é dos atingidos.”

O território é tombado e a obra não foi autorizada pelo Conselho Municipal do Patrimônio Histórico (Compat) de Mariana (MG). O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) já foi acionado, mas ainda não entrou na Justiça. Entretanto, o MP-MG já entrou com uma ação contra a construção, pois, segundo o órgão, o dique S4 viola a propriedade dos moradores do distrito.

A área a ser alagada corresponde a 55 propriedades e atinge patrimônios culturais como a Estrada Real. A Samarco diz que a obra é necessária para conter os rejeitos, mas os moradores de Bento Rodrigues questionam a forma como foi feita a construção. “A Samarco, em nome de uma segurança que nunca respeitou, está impondo o dique. Poucos dias após o decreto, o dique já está enchendo. Nós imaginamos que uma compactação de terra deva ser bem feita. Os atingidos consideram o dique uma bomba-relógio. É uma forma de apagar de cena do crime”, critica o coordenador do MAB.

Impunidade

Os atingidos não concordam com a forma que o acordo foi feito entre a União, o governo de Minas Gerais, a Samarco e as acionistas Vale e BHP Billiton, pois não houve a participação das vítimas, nem discussão a longo prazo. O acordo, anulado em agosto deste ano pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, previa a recuperação integral da bacia do Rio Doce.

“Após o crime, o estado cumpre um papel de legitimar o autoritarismo da Samarco. O acordo federal assinado entre a União, o estado e o município foi um violador de direitos humanos na sua origem, porque a Samarco e o estado são réus no processo e os atingidos, que são as vítimas, não participaram em nenhum momento de qualquer debate sobre o acordo. Os réus escolheram o futuro das vítimas”, afirma Thiago Alvez.

Na época, o Ministério Público Federal (MPT) alegou que o acordo não poderia prosperar, pois não garantia a reparação integral do dano, não contemplava os direitos dos atingidos e limitava aportes de recursos para ações compensatórias.

Em outubro, o MPF denunciou 21 pessoas por homicídio doloso, por conta do crime socioambiental, entre eles, o presidente afastado da Samarco Ricardo Vescovi. Quatro empresas também foram denunciadas: Samarco, responsável pela barragem; as acionistas Vale e BHP Billiton; e a VogBR, que assinou laudo que atestava a estabilidade da estrutura da barragem. A mineradora e as acionistas vão responder por nove tipos de crimes contra o meio ambiente, que envolvem a fauna, a flora, poluição e ordenamento urbano e patrimônio cultural.

“Esperamos que a Justiça acolha as denúncias do MPF e que coloque no banco dos réus quem realmente deve estar dando exemplo às muitas outras empresas e executivos em todo o Brasil que também trabalham violando direitos humanos”, diz o MAB em nota.

Samarco

À reportagem do Brasil de Fato, a Samarco informou que a construção do dique S4 foi autorizada por decreto do governo de Minas Gerais, que, “na prática, estabelece a requisição administrativa dos terrenos, que afeta a posse, mas não a propriedade. Caberá à Samarco repassar ao Estado as verbas para a indenização pelo uso da área, de acordo com os procedimentos a serem definidos pelo governo”.

A mineradora também informou que, logo após a tragédia, colocou à disposição diversos tipos de insumos hospitalares, bem como profissionais de saúde e uma ambulância tripulada para atendimentos. A empresa também alegou que o aumento da quantidade de diagnósticos na cidade se deu porque houve um aumento dos atendimentos. Além disso, afirmou que não se pode “estabelecer relação do número de atendimentos com o evento do rompimento da barragem”.

A empresa também diz que já iniciou o processo de realocação e reconstrução das comunidades afetadas em Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira. “As famílias já escolheram os terrenos onde os novos distritos serão erguidos. As obras serão entregues até 2019”, afirma a mineradora.

Com informações da repórter Simone Freire, do Brasil de Fato