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Acordo de Paris não traz mudanças práticas

Para Maureen Santos, efetividade real do acordo demorará anos para ser percebida

Rafael Neddermeyer/ Fotos Públicas

Acordo é vazio de elementos que possam enfrentar concretamente o problema do aquecimento global e das mudanças climáticas

The Intercept – Começou nesta segunda-feira, dia 7, em Marrakesh, a 22ª Conferência anual da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP22). Este ano, porém, a reunião tem uma novidade: finalmente, os 192 representantes vão tirar do papel o acordo de Paris, que entrou em vigor na sexta-feira, dia 4. Mas, afinal, que mudanças o acordo traz para tornar o mundo efetivamente sustentável?

Quem responde essa e outras questões é Maureen Santos, professora da pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, pesquisadora da Plataforma Socioambiental do BRICS Policy Center e coordenadora de Justiça socioambiental da Fundação Heinrich Böll no Brasil. Ela monitora as negociações da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e conversou ao telefone com The Intercept Brasil.

Falou-se tanto no acordo, mas agora que ele entrou em vigor, a vida não parece exatamente mais verde. Qual seria a origem dessa sensação de indiferença?

Tem dois elementos que eu destacaria, que são importantes. Por um lado, ter saído um acordo foi muito importante do ponto de vista do regime em si, do regime de mudança climática. Já tinha se arrastado um longo período em que os países parte da convenção de clima não conseguiram chegar a nenhum consenso em relação ao novo acordo global, algo que fosse universal, que pudesse incluir todos os 196 países membros.

E, em especial, algo que incluísse fundamentalmente Estados Unidos e China, os dois maiores emissores, com as maiores economias, e que ficaram fora do protocolo de Quioto. Dado esse elemento, o acordo de Paris foi, sim, importante para a questão multilateral. Por outro lado, esse acordo é extremamente vazio do ponto de vista de ter elementos que possam enfrentar concretamente o problema do aquecimento global e das mudanças climáticas.

Acaba que isso vai trazendo argumentos para você dizer “pera lá, por que essa euforia toda?” Porque, depois de muito tempo, conseguiram fechar um acordo global – o que não é fácil dada a crise financeira, dados todos os problemas que a gente vem vendo no mundo. É importante que tenham um acordo. Mas, ao mesmo tempo, a pergunta é: qual a efetividade real? Isso a gente só vai ter mais noção nos próximos anos.

Quais são esses elementos de enfrentamento concreto dos quais você fala?

As mudanças climáticas são um dos elementos da crise ambiental, mas tem muitos outros aos quais não é dada a mesma atenção no cenário internacional. Por exemplo, a crise hídrica, a perda de biodiversidade, a chuva ácida, o problema do lixo… Então tem outros elementos que são tão importantes.

Eu destaco a perda de biodiversidade como um. E a crise hídrica, que chamam de estresse hídrico. São fenômenos que já estão acontecendo em profundidade e gravidade extremas.

As mudanças climáticas são de curto a longo prazo, enquanto os outros já estão acontecendo agora. Há aí questões de prioridade. Ao mesmo tempo, há a questão do acordo ser vazio em si, como instrumento vinculante.

Vazio de que forma?

O acordo é somente a revisão das contribuições nacionalmente determinadas, as NDCs [Nationally Determined Contribution]. Esse é o único ponto obrigatório do acordo. Se os países vão cumprir aquela meta, como e por quê, isso não é obrigatório, a revisão que é. Então traz um pouco de fragilidade.

Além disso, tem um instrumento que tratados internacionais chamam de observância, que em inglês se chama compliance. A do acordo de Paris é extremamente frágil. Ainda vai ser criado um mecanismo de compliance, mas, logo no artigo que trata disso, já se diz que vai ser um mecanismo não punitivo. E não traz nenhum elemento que vai obrigar realmente os países a cumprirem as próprias revisões.

“Se tudo for feito, o que já é muito difícil, todo mundo fizer 100% daquilo com o que se comprometeu, você vai chegar a um aquecimento de 3ºC.”

Ou seja o país pode ter feito um documento lindo, mas, não vai trazer para a prática?

Não, porque, na verdade, na meta, cada um diz o que o quer fazer. Não é uma coisa como foi Quioto, que veio de cima para baixo [o protocolo tinha diretrizes com as quais os países deveriam concordar, como reduzir a emissão de gases causadores do efeito estufa em 5,2%, no comparativo a 1990]. É uma coisa que veio de baixo pra cima. Isso é interessante do ponto de vista da negociação, mas, quando você vê a efetividade, é extremamente mais complicado. Está se contando com uma boa vontade dos países.

Não tem uma observância que vai realmente fazer com o país pense: “o que é melhor pra mim? É melhor cumprir isso, senão vou ser retaliado nisso, nisso e nisso”, ou “é melhor cumprir, porque…”, ou “não vou fazer aquilo porque vou ter uma crise interna”. Cada Estado vai, obviamente, pensar nos seus interesses, no seu equilíbrio de poder.

Então a gente pega o acordo de Paris como um catálogo. O artigo 3, por exemplo, fala da questão dos 2ºC, mas fazendo um esforço para 1.5ºC. Se você comparar com as NDCs que foram entregues pelos países, já têm alguns estudos que apontam que entraria num aquecimento.

REPRODUÇÃO/THE INTERCEPT
Maureen Santos, pesquisadora da Plataforma Socioambiental do BRICS Policy Center

Você pode explicar isso melhor?

Se tudo for feito, o que já é muito difícil, todo mundo fizer 100% daquilo com o que se comprometeu, você vai chegar a um aquecimento de 3ºC. Tem aí uma questão de cronograma de implementação dessas NDCs e de como isso realmente iria atingir o objetivo do acordo, que é a manutenção do aquecimento de média de máximo 2ºC, com revisão para 1.5ºC. Então não seria nem o que está escrito no artigo, que já teria problemas seríssimos.

E já tem vários países falando que, na verdade, o ideal é 1.5ºC e que eles já têm feito esforço grande pra chegar em 1.5ºC. Só que, com o prazo que a gente tem… Estamos em 2016, o acordo entra em vigor do ponto de vista de implementação do que é obrigatório a partir de 2020, até 2025, que é a revisão. Se você for baixar para 1.5ºC já tem que ter uma revisão muito mais ambiciosa.

Por um lado, possivelmente, dado o curto espaço de tempo, não vai acontecer. Por outro lado, eles acabam pegando saídas tecnológicas para justificar a emergência de que ter 1.5ºC. E aí entra todo debate sobre geoengenharia, biotecnologia, entre outros elementos.

Então existe um lobby de empresas de tecnologia?

Tem duas formas de tecnologia novas que estão sendo muito faladas, nesse momento, como solução. É bastante assustador. Uma delas é o tal da BECCS. Na verdade, você usa biotecnologia e geração de energia por biomassa para poder reduzir as emissões de carbono. O “ccs” da sigla é “carbon capture storage” [armazenamento de captura de carbono].

Captura, sequestro, ou armazenamento de carbono é quando você armazena o carbono embaixo da terra. É muito ligado à produção de combustíveis fósseis. Quando você extrai petróleo, acaba tendo que injetar carbono na terra para, por pressão do gás, o petróleo a sair mais depressa. Só que o louco é isso: você usa essa injeção para continuar extraindo mais combustíveis fósseis. É um completo nonsense, mas tem vários defensores dessa tecnologia.

A crise ambiental do entorno vai aumentar mais ainda, só porque se quer captar carbono. Esse é um outro elemento que a gente traz preocupação. O debate da convenção de clima é muito centrado na ideia de redução de gases do efeito estufa, redução da poluição. Só que você não toca na questão de como essa poluição vai ser reduzida, se vai manter um cuidado com a questão ambiental ou se vai causar ainda mais danos.

E qual seria a segunda tecnologia?

A tal da geoengenharia, que é uma intervenção ativa em processos atmosféricos, climáticos ou naturais. A questão de chuva, por exemplo, como você geraria a produção de chuva. A geoengenharia são experimentos que têm uma moratória em vigor, que vai ser re-discutida em dezembro. Já tem anos essa moratória, exatamente porque você tem um princípio internacional do direito que se chama princípio da precaução. Quando não se tem segurança sobre aqueles procedimentos tecnológicos, do ponto de vista dos impactos que eles vão criar — podem até piorar certos processos naturais — você, então, faz uma moratória.

Tem moratória, por exemplo, da semente terminator, que é uma semente estéril. E tem moratória dos experimentos de geoengenharia. Também tem da biologia sintética. Então, agora, com a pressão para sair 1.5ºC, se abre espaço para que esse tipo de tecnologia seja liberado, já que ela é justificada pela emergência do problema.

“Isso não é problema da mudança climática, é problema de uma política preexistente que instalou essas grandes áreas de monocultivo de eucalipto na região.”

Como você vê o Brasil nesse acordo global?

O Brasil aponta algumas medidas que vai possivelmente adotar para as suas NDCs. Isso ainda é uma coisa que vão discutir efetivamente: quais vão ser as políticas? Ainda mais agora que a gente tem essa mudança completa. Apesar da gente seguir certa lógica desenvolvimentista, ainda tem mudanças mais profundas e de jogo de interesse. Mas, inicialmente, quando o governo mandou o documento, ano passado, tudo bem, fizeram uma consulta nacional para sociedade civil participar. Mas a política que o Brasil apresenta, como medidas possivelmente a serem adotadas, acaba repetindo um modelo de desenvolvimento que é corrente no país.

Como assim?

Um dos exemplos que eu vou te dar é em relação à questão do aumento de 12 milhões de hectares de restauração e reflorestamento em áreas no Brasil, áreas degradadas. Não dividem quanto seria restaurado e quanto seria reflorestado. Reflorestamento é monocultivo de árvore. E a gente já tem uma crítica gigantesca no Brasil em relação aos danos provocados pelos monocultivos de árvores. É uma grande desgraça do ponto de vista do uso de recurso hídrico, do dano para o solo, de retirada de nutriente…

Esse é um debate que a gente já vem fazendo há algum tempo, não só dentro da convenção de clima, mas dentro da própria legislação nacional. Não tem uma definição precisa de florestas que diferencie florestas naturais, nativas, de florestas plantadas, que é o que a gente chama de monocultivo de árvore; eucaliptos, palma africana, que é o dendê, pinhos… Não são árvores nativas, são árvores exóticas. Ao mesmo tempo, é um monocultivo, uma extensão grande de terra que só usa aquela mesma planta e que não tem uma restauração.

E como o reflorestamento pode causar danos para o solo? Não era para ajudar a melhorar?

O eucalipto, por exemplo, suga muito a água. É por isso que existe uma definição, um conceito internacional que chama as plantações de eucalipto de “desertos verdes”. Porque o solo fica extremamente arenoso, fica seco. Se você tem alguma lagoa, algum rio, acaba tendo um impacto gigantesco naquela fonte hídrica. Tem impacto na vegetação e na própria questão de clima daquela região.

No Brasil, o exemplo são o norte do Espírito Santo e o Sul da Bahia. São uma área de Mata Atlântica, mas que, na década de 70, teve a instalação de monocultivo de eucalipto durante o período da ditadura militar. Se você for ali hoje, as áreas têm o mesmo clima e a mesma expressão de semiaridização [transformação do clima em semiárido], que não era dessa região. Isso não é problema da mudança climática, é problema de uma política preexistente que instalou essas grandes áreas de monocultivo de eucalipto na região.

É complicado, para quem não acompanha o assunto, entender que aquilo parece, mas não é uma floresta…

Monocultivo não é floresta, primeiro ponto. Segundo: a gente vem defendendo cada vez mais as produções agroflorestais e agroecológicas, porque elas trazem uma mistura de diversos tipos de cultivo. E aí uma ajuda a outra com os nutrientes, cuidado com a água… Tem uma outra lógica de proposta na agricultura agroecológica, que não é uma agricultura de grande escala, não é de dano ao solo. A agricultura agroecológica e orgânica vem produzir alimento. A outra não, a outra produz, em geral, elementos para a exportação, soja, etc. Então tem um debate sobre qual é o modelo que o Brasil deveria seguir. Se for para você transitar em direção a uma transformação socioecológica, não é isso que as medidas estão trazendo.

Então o Brasil precisa ser mais rígido na hora de traçar estratégias para se tornar sustentável?

O Brasil, desde o início do Protocolo de Quioto, tem projetos de mecanismo de desenvolvimento limpo que agora vão ser transladados para o acordo. A partir do acordo de Paris, do artigo seis, o mecanismo de desenvolvimento limpo vai virar, com outras referências, o chamado “mecanismo de desenvolvimento sustentável”.

Só que tem esse debate do carbono, né? Você acaba centrando na questão da emissão e não vê os impactos à integridade ambiental do resto dos elementos. A gente tem esses projetos de redução de emissão por conta da produção carbono vegetal, que vem do eucalipto. É dado crédito de redução de emissões, porque, na verdade, ao invés de usar carbono mineral para siderurgia, você está usando carbono vegetal. Mas não se calcula o impacto na água, impacto no solo, destituição das famílias que moravam ali, a extinção de certas espécies animais e vegetais, a perda de biodiversidade…

Então, algumas marcas se vendem usando uma imagem de que são “ecofriendly” e verdes, quando, na verdade, o tipo de reflorestamento que elas apoiam pode estar fazendo mais mal que bem?

Exatamente. Mas tem como cobrar compromisso dos Estados para que eles realmente tomem medidas efetivas para combater o problema. Claro que reduzir emissão de gás é um deles, mas não pode estar desalinhado ou desconectado dos outros elementos do debate ambiental mais fundo. Porque não é só questão de emissão de gases. É questão da água, do solo… A forma de você produzir e consumir é uma coisa muito mais ampla. E não se vê, na convenção, espaço para esse tipo de debate.

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