Hegemonia do agrotóxico omite 8 mil anos de produção, diz pesquisadora

Franco da Rocha (SP) – Café com leite, pão com manteiga, pessoas reunidas em volta da mesa: o dia começa tranquilo para várias famílias de produtores rurais. Intoxicação, disfunção renal, […]

Franco da Rocha (SP) – Café com leite, pão com manteiga, pessoas reunidas em volta da mesa: o dia começa tranquilo para várias famílias de produtores rurais. Intoxicação, disfunção renal, náusea: o dia termina tenso. O quadro do uso de defensivos agrícolas no Brasil é preocupante, segundo professora Raquel Rigotto, da Universidade Federal do Ceará. Ela apresentou dados de um estudo sobre os efeitos dos agrotóxicos na saúde dos trabalhadores rurais em seminário organizado na capital paulista nesta quinta-feira (24) pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

O assentamento Dom Tomaz Balduíno, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, é um exemplo de calmaria. O estudo apresentado, não. São ao menos 700 mil toneladas de agrotóxicos ao ano, ou uma média superior a três quilos por brasileiro, com perigosos resíduos nos alimentos consumidos no dia a dia. Um destaque negativo é a concentração desse tipo de substância na soja (300 mil toneladas/ano) e no milho (100 mil toneladas/ano).

O motivo para a liderança nesse ranking é que se tratam dos dois principais cultivos de organismos geneticamente modificados no país, com forte crescimento anual. Raquel Rigotto lamenta que tenha se fechado o ciclo no qual as empresas de biotecnologia fornecem a semente transgênica e o agrotóxico mais recomendado para aquela semente.

Raquel lembra aos agricultores reunidos no Espaço Patativa do Assaré que o Brasil e o mundo assistem, desde a década de 1960, à crescente presença de agrotóxicos, à concentração do mercado em poucas empresas e à mecanização do campo. “Criaram a cultura da Revolução Verde, que nos fez esquecer que durante oito mil anos a humanidade produziu uma agricultura sem veneno”, analisa.

A pesquisadora lamenta que siga arraigada na sociedade a ideia de que o único meio para uma produção agrícola eficaz é a aplicação de venenos. Sucessivos governos brasileiros colaboraram para a formação dessa cultura, com generosos incentivos tributários e pouco monitoramento, traços encontrados em toda a América Latina. “Somos vistos como o pedaço de continente com muita terra fértil, muita água, mão de obra barata e desorganizada e um Estado com políticas favoráveis”, critica.

Pressões

Para Raquel, um dos fundamentos da luta contra os agrotóxicos deve ser a pressão por uma postura rígida dos governos em relação ao assunto. Outro caminho fundamental, na visão da professora, é a mobilização dos trabalhadores rurais, os principais afetados pelo desrespeito à legislação e pelo uso desordenado dessas substâncias. “O que se precisa para comprar agrotóxico hoje? Só dinheiro. Com dinheiro, compra quantos litros quiser”, aponta.

Raquel lembra ainda que a postura das empresas é um fator complicador na evolução do debate sobre o uso de agrotóxicos. Como o custo para desenvolver um novo produto é altíssimo, há corporações que querem que os órgãos governamentais aprovem suas substâncias a qualquer custo, independentemente dos riscos para a sociedade e para o meio ambiente.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem sido um alvo de críticas frequentes por manter uma postura mais rigorosa. Além disso, há grande movimentação para evitar que os casos de intoxicação por defensivos agrícolas sejam comunicados às autoridades de saúde, o que cria, segundo ela, certa invisibilidade em torno do tema, na medida em que não aparece nas estatísticas oficiais.

“As empresas querem que a gente prove que determinado agrotóxico provoca câncer, querem que apresentemos o número de mortos como argumento. A gente precisa construir o debate sobre o princípio da precaução: se tem risco, elas que provem que não causa câncer”, desafia.

Conscientização

O assentamento Dom Tomaz tem 63 famílias distribuídas ao longo de 300 hectares – outros 300 são de área de preservação. Cada família produz, para subsistência e para o mercado interno, verduras e legumes em geral. Hoje, é consenso dentro do MST a questão de que a produção deve ser feita sob a perspectiva agroecológica, com respeito ao meio ambiente e sem o uso de agrotóxicos.

Lourival Plácido de Paula, da direção estadual dos sem-terra, lembra, no entanto, que demorou para que caísse em descrédito a crença de que o modelo de produção convencional era o mais eficiente para dar conta de um abastecimento justo e barato. “Com o tempo é que os efeitos desse sistema na agricultura começam a se mostrar cada vez mais graves para a economia e para a população. É um modelo de concentração da riqueza na mão das empresas”

Na segunda parte do seminário, os produtores de diversas partes do estado trocaram experiências, debateram os estudos apresentados por Raquel Rigotto e delinearam estratégias para que as informações sejam levadas a outros assentamentos e a outros movimentos.

Jade Percassi, do setor de educação do MST paulista, considera que o fundamental será discutir maneiras de acabar com a invisibilidade do problema perante a população, tendo como foco a necessidade de restabelecer uma relação saudável entre o humano e a natureza.

“Na sociedade, o debate sobre agrotóxicos não existe. Isso tem efeitos nefastos sobre a saúde da população. Além disso, é um problema para a nossa soberania, pois a agricultura fica nas mãos de seis empresas transnacionais que não dão atenção às questões sociais e ambientais em torno deste veneno”, analias Jade.