Disputa da água

Sonho de Alckmin, transposição de rio em Bertioga é repudiada em audiência

Projeto de transposição do rio Itapanhaú é avaliado por ambientalistas e Ministério Público como desnecessário e com estudo de impacto mal elaborado

PT Alesp

Comunidade de Bertioga, incluindo o prefeito do PSDB da cidade, demonstra não querer a obra de transposição do rio

São Paulo – Quando Carlos Henrique Aranha, sócio-diretor da empresa Prime Engenharia, responsável pelo Relatório de Impacto Ambiental (Rima) da polêmica transposição do rio Itapanhaú, reconheceu que a obra irá aumentar “um pouquinho” a salinidade do mangue, a definição imprecisa acabou sendo o retrato das críticas e questionamentos ambientais em torno do projeto. “O impacto que pode ocorrer tanto no mangue quanto na restinga, é o aumento da salinidade num pequeno trecho”, minimizou logo em seguida, durante audiência pública realizada nesta terça-feira (8), na Assembleia Legislativa de São Paulo para discutir a obra, que pode afetar em muito a vida na cidade de Bertioga, no litoral paulista.

A transposição do rio Sertãozinho/Itapanhaú, é uma obra anunciada – e desde então desejada – pelo governo do estado de São Paulo há mais de um ano, sob a justificativa de garantir “segurança hídrica” para o abastecimento de água da região metropolitana da capital paulista.

Ao custo estimado de R$ 91,7 milhões, o projeto prevê transferir dois mil litros de água por segundo para o Sistema Produtor Alto Tietê, responsável pelo abastecimento da cidade de São Paulo e municípios do entorno.

A iniciativa, porém, desde o início tem esbarrado em uma forte resistência do Ministério Público, de ambientalistas e da comunidade de Bertioga, que acusam o governo do estado, por meio da Sabesp e da Cetesb, de atropelar os ritos legais de licenciamento com estudos de impacto ambiental frágeis e incompletos.

Em 2017, a obra chegou a ser suspensa por medida liminar, cassada no último mês de dezembro no Tribunal de Justiça (TJ-SP). Desde então, o projeto de transposição do rio Itapanhaú segue sendo discutido na Justiça, que ainda não julgou a ação civil pública impetrada pelo Ministério Público.

“É uma obra eleitoreira. Esse licenciamento é nulo, é uma vergonha. Não tem estudo, não fizeram nada para resolver a crise (hídrica). Vamos ter consequências para o resto da vida. A natureza vai sofrer um dano enorme com essa obra sem estudo”, afirmou, durante a audiência, a promotora Almachia Zwarg Acerbi, do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema) de Santos. “São inúmeros problemas, como a ausência de estudo, a área afetada, parecer de órgão ambiental que foi ignorado, avocação de decisões. Tudo isto está na ação do Ministério Público.”

A insatisfação da promotora é ainda maior em função da crise hídrica que afetou São Paulo em 2014 e 2015 ser um problema previsto “há muitos anos” e que a Sabesp “pouco fez para reduzir a perda de água”. Atualmente, cerca de 20% da água no estado de São Paulo é desperdiçada por causa de vazamentos nas tubulações. “Consertar não dá voto, o que dá voto é gastar milhões em obras”, criticou.

PT AlespAna Almachia
Para a promotora Almachia Acerbi, a obra é eleitoreira e o licenciamento concedido é nulo

Durante a audiência, a promotora Almachia inclusive questionou a própria existência da crise hídrica, considerando declarações recentes do agora ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) ao anunciar o fim da crise. Para ela, se o governo ainda insiste na obra, isso demonstra uma falta de entendimento sobre a real situação. “Nem a necessidade dessa obra está comprovada, isso é uma vergonha. Trata-se de uma obra política, sem nenhum estudo concreto da viabilidade desse empreendimento. Hoje essa crise é até questionada, escutamos aqui que nem crise tem mais. Então se não tem crise, não tem estudo necessário, vamos lá gastar milhões, destruir o meio ambiente e depois ver o que acontece?”, questionou.

A promotora reconheceu não acreditar que a Sabesp recue na intenção de realizar a transposição do rio Itapanhaú. Para ela, decisiva é a posição do atual governador Márcio França (PSB). “Como existe um novo governador, tenho esperança que uma pessoa nova entenda a questão e realmente volte atrás, porque essa obra é um verdadeiro absurdo.”

Origem da vida

A definição do sócio-diretor da empresa Prime Engenharia de que a salinidade da região afetada irá aumentar “um pouquinho” foi duramente criticada pelo biólogo Raphael Roberto, integrante do movimento Salve o Rio Itapanhaú. Ele explicou que o manguezal é um dos ecossistemas mais frágeis que existem e qualquer alteração terá sérios impactos. “O manguezal é o berçário da vida marinha. Falar que vai sofrer só ‘um pouquinho’ é um absurdo.”

Para o biólogo, se o governo paulista estivesse mesmo preocupado com a segurança hídrica do estado, revisaria o modelo de contrato com as empresas e indústrias, responsáveis pela maior parcela do consumo de água e com o benefício de quanto mais gastam, menos pagam. Ao longo de mais de três horas de audiência, os interesses econômicos da Sabesp, empresa de economia mista, em detrimento do interesse público, foram fortemente criticados por deputados estaduais e representantes da sociedade civil.   

“É um projeto eleitoreiro e econômico. A cultura da Sabesp é de mercado. Cerca de 70% da receita da empresa vem da região metropolitana, então quanto mais água estoca, mais valoriza as ações na Bolsa de Valores. O que não se pensa é na situação ambiental. A população que se dane, o que importa é o lucro”, afirmou o historiador Carlos Eduardo de Castro, conhecido como Kadu, também integrante do movimento Salve o Rio Itapanhaú.

Já o deputado estadual João Paulo Rilo (Psol) disse não ter dogma com transposições de rios, desde que não haja outra alternativa, o que, para ele, não é o caso de São Paulo. “A crise da água em São Paulo não é crise, é projeto”, afirmou, parafraseando a famosa frase do antropólogo Darci Ribeiro, para quem a educação ruim no Brasil sempre foi um projeto político. “A Sabesp virou um banco.” De acordo com Rilo, a grande presença da comunidade de Bertioga na audiência pública foi um exemplo de como deve funcionar a democracia, com falas respeitosas, com ética e bem informadas.

Marcos Pertinhes/Prefeitura BertiogaRio Itapanhaú
Rio Itapanhaú sob ponte da rodovia Rio-Santos: governo quer retirar dois mil litros de água por segundo

Futuro

A oposição a transposição do rio Itapanhaú encontra abrigo até mesmo no prefeito tucano de Bertioga, Caio Matheus, representado na audiência por Marco Antonio de Godoy, secretário do Meio Ambiente da cidade.

“O município é contrário a realização da obra”, afirmou Godoy, taxativo. Na sua avaliação, apesar de já haver licenciamento prévio concedido pela Cetesb, a pauta ainda está “acesa”, e ele acredita que a discussão ganhará mais força a partir de agora com o apoio da Assembleia Legislativa.

“Precisamos rediscutir esse projeto. Até que ponto ele é necessário? Até que ponto os impactos que virão não serão negativos para a Baixada (Santista)?” Para ele, o representante da Sabesp não trouxe nenhuma informação nova para o debate, apenas as mesmas informações – ou a mesma falta de – que já estão nos autos do processo.

Um dos proponentes da audiência pública, o deputado estadual Alencar Santana (PT) destacou a falta de sensibilidade da Sabesp e da Cetesb, a primeira como proponente da obra e a segunda como órgão licenciador, ao não respeitar a opinião de especialistas, da comunidade da região e de ambientalistas. “As pessoas que vão sofrer o impacto da transposição trouxeram diversos argumentos e estes dois órgãos continuam com a disposição fixa, sem abertura para o dialogo.”

Para o deputado petista, o atual governador, Márcio França (PSB), tem agora responsabilidade sobre o tema e pode suspender a obra para que as dúvidas lançadas sobre a questão ambiental sejam tiradas. “Esse debate demonstrou que o quê a Sabesp quer fazer, e a análise da Cetesb, tem inúmeros equívocos que precisam ser resolvidos. São coisas que não têm correção no futuro. Uma vez que o impacto ambiental aconteça, não dá para consertar no dia seguinte”, ponderou.

Santana ainda disse que tentará articular uma audiência entre o governador e representantes da sociedade civil. Também há a possibilidade da criação de uma frente parlamentar contrária à transposição do rio Itapanhaú e, talvez, até mesmo a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).