Entre Vistas

‘Estou tentando fazer a minha parte’, diz Ana Cañas sobre arte e política

Juca Kfouri estreou na TVT e colecionou entrevistas históricas. Em março, a cantora falou sobre música e ativismo. 'Continuarei cantando músicas de amor. O amor também é tema político'

TVT

Nascida em 1980, há 10 anos Ana era uma menina que tocava na noite, nos bares, e fazia sua divulgação ‘na raça’

Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor…

São Paulo – O silêncio é tão profundo que o estúdio improvisado nem parece estar no coração barulhento de São Paulo. A pedido de Juca Kfouri, apresentador do programa Entre Vistas, da TVT, Ana Cañas canta sem acompanhamento Retrato em Branco e Preto, de Tom Jobim e Chico Buarque, mais uma canção do ano que não acaba, 1968. No início, Juca quer justamente saber como ela se sentiu em uma noite no sofisticado Baretto, em São Paulo, tendo o próprio Chico na plateia. 

“São aventuras desta vida”, responde Ana. “Tremi muito… O mais louco é que na semana anterior ele tentou ver e não tinha lugar. Ele foi embora. Eu quase trucidei os garçons”, brinca. Fazia parte do repertório do show justamente Retrato em Branco e Preto

A conversa para o Entre Vistas, que foi ao ar ontem (6) à noitese concentrou obviamente na produção musical de Ana Cañas e na diversidade cultural brasileira, mas era inevitável que abordasse aspectos políticos, dado o engajamento da artista em diversas manifestações, inclusive a favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ela conta que já foi aconselhada a “só cantar”, mas destaca o poder transformador da arte. 

O programa é exibido toda terça-feira, às 21h, no canal digital 44.1 e nos canais da TVT no Youtube e no Facebook. A gravação é feita no Café dos Bancários, na sede do sindicato da categoria, no Edifício Martinelli. Assista à entrevista completa abaixo.

Outro debate foi sobre a atualidade da sigla MPB, que para Juca parece identificada com pessoas acima de 50 anos. “Já não está ultrapassada?”, questiona a jornalista Patricia Palumbo (Rádio Vozes), uma das convidadas, ao lado do compositor Sérgio Molina, coordenador da pós-graduação em canção popular na Faculdade Santa Marcelina. “Já caducou”, concorda Ana. 

“No meu pensamento, parecia que (a MPB) era feita basicamente por compositores homens que tocam violão de nylon. Hoje, os artistas bebem de fontes tão diversas… Essa sigla já não traduz essa geração”, acredita Ana, nascida em 1980 e que 10 anos atrás, como ela mesmo lembrou, era “uma menina que tocava na noite, nos bares”, e fazia sua divulgação “na raça”, até chegar a uma gravadora multinacional. Agora, acredita, vender discos é uma “página virada” com as mudanças na indústria fonográfica. “Um jovem de 15 anos consome cultura pela internet e pelas redes sociais.”

Diversidade e gênios

“Talvez o Brasil seja o país cancioneiro do mundo”, sugere Juca, ao que Patrícia cita os standards dos Estados Unidos. “Acho que a gente é o país da diversidade musical.” Ele fala em Villa-Lobos e pergunta: “A gente tem mais do que eles?” “Talvez a gente ganhe deles em número de gênios, porque a gente se espalha mais. Mas eles têm uma indústria melhor do que a nossa, empreendedores musicais mais preparados.”

Juca volta a Chico Buarque, que constatou não ser tão popular assim nas redes sociais. E observa que Ana Cañas há algum tempo “vem tendo uma coragem cívica” de ser porta-voz de um posicionamento político. E quer saber o quanto isso custa à cantora, em termos pessoais, do ponto de vista da agressividade.

“Desde que eu me entendo por ser humano, eu não me deixo levar, sabe? Porque os argumentos muitas vezes tremendamente pífios das pessoas que defendem, como diz nosso amigo Jessé (o sociólogo Jessé Souza), a elite do dinheiro, eles são tão ignorantes às vezes… Eu foco no que tenho de fazer, como você falou, no meu dever cívico, como cidadã”, diz Ana. “De entender o contexto político do Brasil, estudar, ler, me informar e me posicionar a partir das minhas próprias conclusões. (Agressividade) é um resultado dessa falta de informação, da falta de interesse pela informação real. Porque hoje nós temos fontes de informação muito democráticas, no sentido de que essa fonte não está atrelada ao interesse do capital ou da economia. Então, você tem como se informar. As pessoas que optam por não se informar acabam agindo dessa maneira. Quando sinto que vem uma avalanche de comentários muito agressivos, eu não leio (comentários nas redes), eu sigo fazendo o meu trabalho.”

A força dos movimentos

Ana fala de que todo o processo político atual envolve quatro eleições seguidas vencidas pelo campo progressista, “a demonização da esquerda brasileira, a infantilização da ideia de que a corrupção é o problema de tudo”. Ela conta ter a cantora e ativista norte-americana Nina Simone (1933-2003) como inspiração – como ser artista e não refletir seu tempo? “É uma artista que eu admiro, que eu me inspiro, que defendeu os direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Foram os movimentos civis que conquistaram muitas coisas. Esse movimento precisa ser feito. As pessoas que entendem o que está acontecendo precisam se mobilizar. Estou tentando fazer a minha parte”, afirma.

Ao defender o engajamento, Ana esclarece que não está criticando ninguém. Lembra que, no ano passado, lançou um single, Respeita, que aborda diretamente a questão do assédio. O clipe lançado em maio de 2017 tem participação de dezenas de mulheres. Hoje, não apenas os artistas se envolvem, mas as meninas, a “molecada”, lembra.

Sérgio Molina quer saber o quanto o atual cerceamento à cultura aparece no trabalho da cantora. Ela lembra que algumas pessoas chegaram a dizer ‘Vamos só cantar, não precisa pensar você não entende nada de política, para com isso’. E afirma que a participação dos artistas foi determinante na história. Inclusive em termos de comportamento. “As mulheres estão realmente modificando o cenário”, diz Ana, que está preparando composições para um novo disco. Durante o programa, conta que exatamente naquele dia de gravação estava trabalhando em uma canção com o título Tá Osso. Em 2015, ela lançou Tô na Vida, seu quarto álbum de estúdio.

“É impensável você trabalhar na indústria cultural e não ter uma mensagem política”, diz Juca. “Não sei se futebol transforma, mas a arte sem dúvida”, emenda Patricia Palumbo. “Pensa no Sócrates”, ele reage. “Sim, mas era um fenômeno isolado”, ela responde. “A Democracia Corintiana que o Sócrates lidera tem tudo a ver com o movimento das diretas, com a redemocratização, que hoje é abalada de maneira grave no país”, acrescenta o apresentador.

Ana conta que perde seguidores por causa de seu posicionamento. “Tem post que, sei lá, são 2 mil seguidores que se vão. Mas no seguinte chegam 2 mil. Não quero ficar numa posição de cobrar isso… Cada um com a sua consciência. Para mim, é uma questão importante das minhas crenças pessoais que se eu não fizer a minha parte eu não consigo botar a cabeça no travesseiro e achar que eu cumpri com o meu dever. Continuarei cantando músicas de amor. Até porque o amor também é um tema político”, diz, preocupada com o “momento grave” vivido no Brasil. “Enquanto houver esperança, haverá luta.”

Ela chegar a pôr em dúvida se as eleições deste ano serão mesmo realizadas. “Eu não cogito dessa hipótese. Não é possível que a gente volte a querer votar pra presidente”, diz Juca, lembrando do movimento pelas diretas. Ana conta que viu imagens lembrando a ditadura durante o show no Rock in Rio. E considera que o ocorrido no Rio de Janeiro foi, de fato, uma intervenção militar.

“Eles vão fazendo as coisas. É assim que vai se instalando. Vão tomando as decisões que vão cerceando a nossa liberdade. Eles fazem isso”, diz Ana, antes de cantar, no encerramento do segundo bloco, O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc), clássico do movimento pela anistia no Brasil, gravado por Elis Regina em 1978. Dez anos depois do Retrato em Branco e Preto. E dois anos antes de Ana Cañas nascer. 

Assédio e revolução

Molina pergunta sobre o próximo trabalho e Ana diz que não tem “planos arquitetônicos”. “Sou fechada com o que eu sinto”, falando de meninas, jovens, feministas. “É uma revolução. Cantar o amor também é político. Vou fazendo o que eu sinto.” A esta altura, ela relata já ter sofrido assédio, “muito cedo”, e que depois viriam outros. “Vergonha é de quem assediou. A culpa não é nossa, temos de lutar contra esse comportamento.”

Com longa estrada no meio musical, Patricia conta de sua experiência com a Rádio Vozes, digital, que completará dois anos no ar em março e tem por enquanto 5 milhões de acessos: “70% de música brasileira, 30% de música internacional”. E diz que adora o programa que vai ao ar ao meio-dia na Rádio Brasil Atual, referindo-se ao Hora do Rango. Molina diz que “quase todo o corpo docente” da faculdade tem discos gravados. 

Juca tenta animar a cantora. “Vai dar certo, Ana. A gente está perdendo, mas vai reagir.” E cita o amigo Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal emérito de São Paulo: “Não há derrotas definitivas para o povo”. Molina brinca com o título de recente livro do jornalista, Confesso que Perdi, sugerindo uma mudança para Confesso que Virei o Jogo

Ana termina cantando Respeita.

Você que pensa que pode dizer o que quiser
Respeita aí!
Eu sou mulher
(…) 

Ela vai
Ela vem
Meu corpo, minha lei
Tô por aí, mas não tô à toa
Respeita, respeita, respeita as mina, porra!

Juca só não conseguiu arrancar de Ana uma declaração sobre ser corintiana. “É uma mentira!”, reagiu a cantora, rindo e narrando sua memória auditiva e afetiva do pai, são-paulino convicto, ouvindo jogos pelo rádio. O apresentador se conforma, lembrando que Patricia é santista e Molina, palmeirense. “Mais democrático, impossível.”

Assista à íntegra do programa:

 

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