Literatura e realidade

Kafka e a sentença de Moro: do desastre institucional ao renascimento da barbárie

Referências ao escritor Franz Kafka são destaque no livro que reúne artigos de juristas sobre a sentença do juiz de Curitiba

abr / divulgação

Moro e Kafka: construção de narrativa que coloca em xeque os direitos fundamentais

São Paulo – As referências ao escritor Franz Kafka (1883-1924) no livro Comentários a uma sentença anunciada – o processo Lula, que reúne artigos de juristas sobre a sentença que terá apelação analisada amanhã (24) no TRF4, em Porto Alegre, mostram que a narrativa que o juiz Sergio Moro, de Curitiba, tenta impor no caso do tríplex do Guarujá tem traços perversos e chegam até a marcar “o renascimento da barbárie”. É assim que define o jurista Sérgio Sérvulo, que adotou o nome do escritor tcheco no título de seu artigo “Kafka é fichinha”.

“Por que estou dizendo essas coisas? Porque, de algum tempo para cá, muitos juízes deixaram de fundamentar as suas decisões (como determina a Constituição, sob pena de nulidade), e passaram a aplicar, às partes, sanções arbitrárias, desproporcionadas e absurdas, não previstas em lei. Isso – que pode equivaler à antiga “morte civil” – significa, isto sim, a morte do Direito, um retorno à moralidade como único processo normativo, e o renascimento da barbárie”, afirma Sérvulo.

Já Juliana Neuenschwander e Marcus Giraldes bebem na própria fonte, o romance O Processo (L&PM, 2013), para exaltar as semelhanças nos episódios de Dilma, quando do impeachment, e agora de Lula: “(Dilma) Foi julgada culpada porque inocente, preferimos dizer. Com Lula acontece algo semelhante, mas aqui estamos mais além de Kleist e Kohlhaas, nos deparamos com Kafka e Joseph. K, no Processo. A certo ponto de suas desventuras, perdido no labirinto do tribunal, na arquitetura do qual Kafka representou magistralmente os meandros da lei e suas infinitas dobraduras, K. afirma: – Minha inocência não simplifica o caso (…) Tudo depende de muitas coisas sutis, nas quais o tribunal se perde. Mas ao final surge, de alguma parte onde não havia nada, uma grande culpa”.

José Carlos Moreira da Silva Filho lembra o escritor, e remete sua análise à questão lógica da construção da sentença: “O juiz tem por “comprovada” a “propriedade de fato” do triplex, mesmo sem a titularidade ou a posse, e pune o ex-presidente porque ao não ter a titularidade nem a posse, ou não admitir a tal “propriedade de fato” ele estaria ocultando uma vantagem indevida. Então como se não bastasse ser condenado por corrupção é também condenado por lavagem de dinheiro. Só nos resta perguntar: como ele pode ter lavado um dinheiro que nunca teve através da titularidade de um apartamento que nunca foi seu ou do qual nunca teve a posse? Se Franz Kafka estivesse vivo talvez ele pudesse explicar”.

Do ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão: “Ao final, temos que Lula foi condenado PORQUE não havia provas contra ele. Mais kafkiano impossível. Supôs o juiz que o réu é um caráter deformado, capaz de ocultar a propriedade de um imóvel, sem deixar qualquer vestígio dessa propriedade. Só rindo mesmo, se esse modo de agir não fosse tão desastroso para a credibilidade das instituições do país”.