No Chile, atos por educação desembocam em contestação do modelo de país

Estudantes e professores realizam as maiores manifestações desde a redemocratização e avisam: não é só a educação que está em jogo, é um Estado que alimenta a desigualdade

Forças militares investem contra manifestações populares no centro de Santiago (Foto: Vision7/Youtube/Reprodução)

São Paulo – O presidente do Chile, Sebastián Piñera, parece ter errado o alvo ao anunciar esta semana um pacote educacional que tentava dar fim aos movimentos populares iniciados há três meses em várias partes do país. Talvez nem Piñera, nem seus ministros, nem a oposição tenham condições de acertar no centro da questão: estudantes e professores mobilizados nas maiores manifestações públicas em décadas não querem uma simples mudança. O que eles desejam é um novo modelo, não só de educação, mas de Estado.

“Temos muito clara a ideia de que essa é uma democracia muito precária, que não garante que o povo possa participar”, resume Germain Dantas, presidente da Federação de Estudantes da Universidade Federico Santa Maria, uma instituição privada de Valparaíso, e integrante da Confederação de Estudantes do Chile. “Há grupos de poder que se servem sempre do prato da política, e não fazem políticas para as pessoas, mas para certos grupos.”

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O poder de síntese de Dantas não poderia ser maior. Tornou-se consenso entre os manifestantes que não há nas atuais instituições chilenas um caminho para resolver os problemas educacionais. Sem confiança no Congresso, no Executivo ou em qualquer líder da política tradicional, a juventude chilena pede o que não existe na Constituição do país: a possibilidade de que os cidadãos convoquem diretamente um plebiscito. Isso é motivo para parar o movimento? De jeito algum, respondem os estudantes. Altere-se o texto constitucional para que se faça a consulta popular.

“O caminho do Congresso para nós não é confiável porque aí no geral se opta por um acordo entre quatro paredes, não se está em sintonia com o que demanda o povo”, avalia Jaime Gajardo, presidente do Colégio de Professores do Chile, que reúne 100 mil docentes de todos os níveis. É então que os movimentos chilenos passam a se parecer com tantos que ocorrem mundo afora neste 2011. Há um cansaço com o atual modelo de político e de Estado, manifestado em atos sem uma clara liderança central e com convocação por meio das redes sociais da internet. 

Não convenceu

Piñera convocou cadeia nacional de rádio e TV na última terça-feira (4) para anunciar um pacote de medidas para a educação. Os US$ 4 bilhões liberados vão aumentar o número de bolsas para o ensino técnico e reduzirão as taxas de juros pagas pelos estudantes, além de se permitir a suspensão do pagamento em caso de desemprego.

“Obviamente, dar certos agrados a certos setores que estão mobilizados tem como fim dividir o movimento. Queremos respostas, mas para o espectro completo da educação e de todos os atores que estão se mobilizando”, recusa o estudante Dantas. O pronunciamento de Piñera foi feito após os atos de 16 e de 30 de junho. Este superou aquele na condição de maior concentração de manifestantes desde a redemocratização, reunindo em torno de 400 mil pessoas em todo o país – segundo os organizadores. O de 14 de julho, próxima quinta-feira, promete superar o anterior, e os estudantes não parecem dispostos a vislumbrar um teto para o movimento. Vários sindicatos de trabalhadores anunciaram a intenção de se somar a docentes e alunos. 

O ensaio de solução anunciado por Piñera demonstra o tamanho do problema. O atual sistema educacional chileno é filhote da ditadura de Augusto Pinochet. No início da década de 1980, o governo apostou que o caminho era a abertura ao setor privado, e a ideia da educação como direito básico foi substituída pela “liberdade de escolha”, nos moldes do livre mercado proposto pelas teorias neoliberais em voga. 

A partir de então, quem quer, estuda em uma escola pública. Quem não quer, vai a uma escola privada subsidiada pelo Estado. Assim, dizia acreditar Pinochet, o Estado criaria competição para o próprio Estado, com escolas municipais tendo de melhorar para rivalizar com as particulares. O financiamento de cada unidade passou a ser proporcional ao número de alunos.

O resultado foi a deterioração do ensino público. O professor Gajardo entende que o modelo atual é impossível de administrar. “O sistema educativo chileno entrou em uma imensa crise porque tem uma educação de elite, que segmenta e que provoca uma tremenda desigualdade.” 

Nas universidades, tanto nas públicas quanto nas privadas, é preciso pagar matrícula e mensalidades. Quem não pode arcar tem direito a um empréstimo a taxas de juros que podem tornar o montante impagável. 

Não convencerá

As medidas propostas por Piñera reafirmam a fé no atual sistema, em vez de modificá-lo, como desejam os manifestantes. O ministro da Educação, Joaquín Lavín, enfraquecido no cargo por não conseguir solucionar a crise, enfatizou que uma das medidas mais importantes é a concessão de bolsas que garantirão acesso universitário aos alunos que integrem os 40% mais pobres do país. O problema é que para obter o benefício será necessário cumprir com um desempenho acadêmico definido por provas que visam a escolher os alunos com maior capacidade profissional. 

“Isto para mim é o mais motivante e uma das medidas mais importantes. Se você tem méritos acadêmicos e está dentro dos 40% de famílias de menores recursos do Chile vai ter uma bolsa assegurada. Este é o governo das oportunidades”, declarou o entusiasmado Lavín.

É difícil, para os chilenos, acreditar que o governo comandado por um bilionário com origem conservadora e que tem se movido politicamente de acordo com as sondagens de opinião possa ser um governo de oportunidades iguais para toda a população. Além disso, a afirmação do ministro demonstra a crença do governo na competição e na meritocracia, indicando que a educação não é, exatamente, um direito universal que independe de desempenho. 

Não suficientes os planos de privatização de recursos minerais, que ocupam o cerne da economia chilena, um vídeo gravado por Piñera em 2008 colocou a cereja no bolo. “Somos partidários de um sistema misto de educação. Financiado pelo Estado, gratuito, e que garanta a todos o acesso a uma educação de qualidade”, afirmava o hoje presidente. As imagens, amplamente divulgadas via internet, aumentam a convicção de que ele altera o discurso de acordo com o momento.

A Concertação, que governou o país desde a redemocratização até o ano passado, e hoje ocupa a oposição, não está credenciada a negociar uma solução. A ampla coalizão de partidos não levou adiante reformas do sistema educacional, preferindo alterações que legitimassem o atual modelo. O ápice da insatisfação se deu em 2006, na chamada Revolta dos Pinguins, com manifestações que eram, a seu momento, as maiores desde o fim da ditadura. A presidenta Michelle Bachelet preferiu facilitar o financiamento e tentar a redução das desigualdades entre as escolas públicas e privadas. 

O remendo segurou a barragem por algum tempo, mas agora a represa transbordou. Diferentemente dos protestos de há cinco anos, a mudança em colégios e universidades já não é o suficiente. “Não é só a educação que é a grande demanda. É a institucionalidade do Chile, a política, como se governa o país. Estamos muito contentes pela grande mobilização, que está criando uma grande expectativa pela articulação social, que se reprimiu muito durante a ditadura e que após a volta à democracia se seguiu reprimindo”, sintetiza mais uma vez Germain Dantas. 

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