Obrigação assumida pelo Brasil, rota de saída do fumo é tortuosa

Garantia de compra da produção, dificuldade em garantir alternativas para propriedades pequenas e receio de mudanças seguram agricultores na fumicultura

O produtor de fumo Augustinho: problemas de saúde e dificuldades financeiras (Foto: Gerardo Lazzari)

Palmeira (PR) – Augustinho Paizani ri fácil, ri o tempo todo, ri de tudo quanto é coisa, até de coisa sem jeito. Aos 76 anos, brejeiro e cheio de boas vibrações, faz piada com a situação complicada que o filho viveu há poucos anos. “Agora ele não esquenta a cabeça porque perdeu todo o cabelo”, fala, em meio a gargalhadas em um fim de tarde de céu limpo no interior do Paraná.

Vai ver, seu Augustinho ri para compensar o que ficou guardado durante cinco anos. “Esse tal de fumo foi um atraso de vida que, meu Deus. O que nós sofremos…” Enquanto Hamilton Paizani, hoje com 48 anos, produziu tabaco, na década de 1990, a família esteve envolta em uma trama difícil. Em meio a problemas de saúde, a dívida com a empresa fumageira apenas fazia crescer. A produção não alcançava para pagar os gastos, o que costuma ocorrer com certa frequência, como mostra esta série de reportagens.

“Carga de trabalho no fumo é muito puxada. Você trabalha dobrado e não tem resultado nenhum. Depois que está com a corda no pescoço, tem que ir continuando, mas a coisa foi enfeiando cada vez mais, precisava parar”, lembra Hamilton. A essa altura, entrava no novo século carregando uma dívida de R$ 27 mil com a fumageira, que não hesitou em ingressar na Justiça e obter o embargo da propriedade e de algumas instalações. Apenas seis anos depois, um acordo reduziria o débito a um nível condizente com a renda da família.

Garantias

Lídia Bandacheski do Prado, de 35 anos, trabalhou durante mais de duas décadas na fumicultura. Apesar da intoxicação crônica por agrotóxicos, que lhe fez perder parte dos movimentos dos braços e das pernas, não via alternativa que não fosse seguir produzindo fumo. Só não se manteve nessa cultura porque as empresas, ao notarem os problemas de saúde da agricultora, se recusaram a manter o contrato com ela e sua propriedade. “Quem vai ficar plantando fumo, tomando chuva e sol, se tiver outra coisa para fazer?”, indaga.

A pergunta de Lídia é reveladora das dificuldades encontradas pelos fumicultores, do Paraná ou dos demais estados envolvidos na cadeia produtiva. As propriedades são muito pequenas, algumas têm um ou dois hectares, o que torna muito difícil ganhar dinheiro com grãos como milho e soja, que prosperam no solo da região. 

Outra questão é que, por piores que sejam a carga de trabalho, o endividamento e os riscos à saúde, as empresas fumageiras garantem a compra de toda a produção, fornecem todos os insumos e as sementes, retiram as folhas de tabaco ao fim do processo de secagem. “Qual é a cultura que tem garantia de compra? É o fumo. Por mais que seja ruim a relação, o produtor plantou, vende”, constata Paulo de Oliveira Perna, coordenador do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Se o fumante é dependente do cigarro, o produtor do fumo tem dependência do sistema de produção. Ancorado em um galho seguro, teme dar um salto no vazio ao tentar alcançar um galho que se mostre mais frondoso e promissor. Amadeu Bonatto, coordenador técnico do Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (Deser), lembra que há também a facilidade de obter financiamento diretamente com a fumageira, embora pagando juros mais caros por isso. “O processo de diversificação da produção não é simples. Vai exigir um conjunto de política publicas articuladas, que passa pelo crédito, pela assistência técnica fundamental e por um processo educativo geral, também profissional.”

A convenção e a obrigação

A diversificação não é simples, mas é obrigatória. Também não tem segredo: a questão é financeira para a imensa maioria dos envolvidos. O Brasil é o segundo maior produtor mundial de tabaco e o maior exportador, numa cadeia que envolve ao menos 220 mil famílias nos estados do Sul, mais de 500 mil pessoas. 

Ao mesmo tempo, ratificou em 2005 a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco. A Organização Mundial de Saúde (OMS) visa a reduzir o número de mortes provocadas pelo tabagismo, que se estima tenham sido 100 milhões ao longo do século passado e serão outras 6 milhões entre janeiro e dezembro deste ano. Daí nascem medidas que proíbem o fumo em lugares fechados e restringem a publicidade relacionada ao cigarro. Os resultados, informa a ONU, já se mostram em uma redução de 5% no consumo mundial entre 2005 e 2009, uma queda que deve se acentuar a partir da segunda metade desta década, à medida que se aperfeiçoem as restrições ao consumo.

No Brasil, os efeitos da redução de demanda se mostram na prática. As fumageiras têm aberto novas frentes na África, e já anunciam extraoficialmente o descadastramento de alguns produtores. “Os produtores, sabendo que a tendência é reduzir o consumo, há uma corrida em busca de alternativas, já que não tem fórmula mágica”, registra Lucia Wisniewski Diniz, coordenadora regional do Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater). 

O Emater é um dos órgãos parceiros do governo federal na tentativa de garantir uma saída rentável aos fumicultores. Um dos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro ao assinar a Convenção Quadro é o total apoio aos produtores que se verão afetados pelo recuo na demanda por fumo. O Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas por Tabaco, conduzido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, beneficia atualmente 30 mil famílias, a maioria no Rio Grande do Sul, principal produtor nacional.

A coordenadora do projeto, Adriana Gregolin, entende que parcerias com universidades, prefeituras, órgãos estaduais e a Embrapa são fundamentais na difícil tarefa de encontrar culturas que deem renda segura aos produtores. Ninguém solta o galho do tabaco de uma vez, a transição é feita de maneira gradativa, com uso de poucos insumos para assegurar a redução de custos. “A gente quer sempre que a zona rural se desenvolva com qualidade de vida para as famílias, que a cidadania chegue ao campo.”

O problema, admite, é a falta de recursos. Este ano, o projeto terá à disposição apenas R$ 5 milhões, um valor irrisório se comparado ao orçamento que as fumageiras dispõem para manter os produtores nesta atividade. Outros programas conexos que poderiam ajudar a mudar o quadro, como a obrigação de que parte da merenda escolar venha da agricultura familiar, são igualmente incipientes.

Outras saídas têm sido buscadas por agricultores e por organizações não-governamentais, que ensaiam a montagem de cooperativas e de mercados regionais que garantam a comercialização, encorajando mais produtores a realizarem a migração. 

Em Palmeira, a 80 quilômetros de Curitiba, alguns produtores começam a se unir para organizar a distribuição de alimentos. Anderson Sviech quer largar o galho de fumo orgânico, que só tem lhe dado prejuízo e ameaça quebrar. “Alimento orgânico é qualidade de vida. Você pensa que está pagando mais caro hoje para comprar orgânico, mas está economizando lá na frente na farmácia, no médico.”

Sem galho

Hamilton Paizani e o gargalhante Augustinho trocaram de ramo há quase uma década. Não se arrependem de nada. Na tarde em que visitamos a propriedade havia sido organizado um “dia de campo”, ocasião em que os produtores trocam ideias sobre seus cultivos orgânicos. “Às vezes tem algum problema que o caboclo tem na propriedade, vem aqui, aprende, faz lá e dá certo”, lembra o filho.

Hoje, a família não precisa de praticamente nada vindo de outro lugar. As sementes são da propriedade, que é guardiã de variedades crioulas do milho, uma reserva fundamental para assegurar a independência do agricultor e a boa produtividade. A adubação vem toda dos animais e das árvores locais. Até mesmo a água que se utiliza dentro de casa é filtrada e reaproveitada para consumo animal. 

A erva mate na cuia que passa de boca em boca de quem chega por aqui é produzida na mata reflorestada, uma medida de garantir a sobrevivência das nascentes e de evitar a contaminação pelos agrotóxicos utilizados nos vizinhos. A cozinha da família Paizani é bem diferente da cozinha de um fumicultor: as panelas têm arroz, feijão, carne de porco, o forno cozinha o pão, há frutas aos montes e de vários tipos. “A gente pensa que a terra é fraca, mas se souber trabalhar nela, dá para usar direto. A tendência é ficar cada vez melhor”, lembra Hamilton.

Perto dali, na vizinha São João do Triunfo, o Sítio Cipó se orgulha de não produzir fumo. À medida que o jovem produtor Antônio Luis Santos Leite sobe as terras, surgem milho, feijão, uva, verduras, abóbora, mandioca. “A gente tem o sustento, tem liberdade para trabalhar, não está contaminando a saúde.”

Tampouco está contaminando o ambiente. Seu Valdemar, dono do sítio, não permite de jeito nenhum que se mexa na mata que preserva uma série de nascentes que abastecem esta e outras propriedades. Um pouco mais para cima, faz o manejo sustentável da floresta, uma das dicas dadas a ele e a outros agricultores da região pela AS-PTA, uma organização não governamental que tenta assegurar viabilidade financeira a estes produtores. 

“A maioria tá com a mente contaminada e acha que é só fumicultura, não quer mudar. Você vê que essa pessoa não cresce. Tamo pobre, mas temo uma renda”, analisa Antônio. Quem tem tanto alimento na mesa, pobre não está.