Ditadura: familiares esperam resgate de ossadas em Vila Formosa

Agentes da repressão agiram para ocultar corpos de vítimas de tortura e execuções sumárias e descaracterizar o maior cemitério da América Latina, na zona leste de SP

Dona Isabel e Francisco, mãe e irmão de Virgílio Gomes da Silva, cujo corpo foi ocultado por agentes da repressão (Foto: Arquivo pessoal)

São Paulo – “Tem um trabalhinho de garimpagem para localizar o espaço onde foi enterrado. Aqui em São Paulo a gente tem basicamente uma complicação em cima da outra. A repressão fez seus crimes, matou as pessoas e enterrou com nome falso. Tentaram fazer o crime perfeito.” As palavras de Ivan Seixas, presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), são um resumo preciso da ocultação de corpos durante a ditadura (1964-85). Ele refere-se a ossadas no cemitério de Vila Formosa, zona leste da capital paulista.

Seixas é um dos encarregados da tarefa de articular parcerias necessárias para levar adiante a localização e a identificação desses corpos. Contratado como consultor da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, ele assegura que faltam detalhes para assinar o convênio com a Polícia Federal para realização de exames de DNA que permitiriam identificar as ossadas.

O caso mais conhecido é o da vala comum aberta em 1990 no Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona noroeste de São Paulo. A parceria com a PF deve ser oficializada nesta semana. O passo seguinte promete ser ainda mais complexo, o tal “trabalhinho de garimpagem” a que se refere Seixas, um eufemismo para definir o que o espera. Uma comparação com procurar uma agulha no palheiro poderia ser mais clara em relação à busca dos restos mortais de um desaparecido político em Vila Formosa: nenhum militar, ao que se sabe, se interessou por agulhas.

O maior cemitério da América Latina fica em Vila Formosa, bairro da zona leste paulistana. Inaugurado em 1949, tem uma área de 763 mil metros quadrados, equivalente a mais de 70 campos de futebol. É tamanho suficiente para se perder de vista o montanhoso horizonte local. Os repressores da ditadura acharam que era espaço suficiente para ocultar alguns de seus crimes.

Os ativistas de direitos humanos e representantes do Ministério Público têm informações de que o local foi usado para esse fim a partir do fim da década de 1960. “Cheguei a ver caminhão com mais de cem indigentes. Quer dizer, falavam que eram indigentes”, conta um antigo funcionário, que pediu para não ser identificado.

Classificação “indigente”

“Indigente” é a classificação utilizada até hoje para os corpos que não recebem identificação. Foi como indigente que o corpo de Virgílio Gomes da Silva chegou a Vila Formosa. Comandante Jonas foi o articulador do sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick, em setembro de 1969. A prisão de Jonas deixou marcas: o corpo registrado na ficha 4.059/69 chegou ao cemitério com costelas quebradas e afundamento do osso frontal, marcas da sessão de tortura. Ele é um dos poucos casos em que se tem certeza de que seu corpo foi parar no local.

“Do jeito que o Virgílio era, de não ficar calado, de responder mesmo, ficavam mais agressivos. Acho que não sabiam o que fazer com ele, tanto que o enterraram como indigente”, lembra Ilda Gomes da Silva, esposa do militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Presa no dia seguinte à morte do marido, ela deixou o país após ser liberada e retornou apenas em 1991.

Já era tarde para tentar localizar os restos. A família de Virgílio Gomes da Silva soube em 2004 que o corpo do integrante da Ação de Libertação Nacional (ALN) estava em Vila Formosa. Neste meio-tempo foi feita uma imensa descaracterização do cemitério. “Tinha só duas árvores aqui. Em poucos anos foram plantadas mais de 17 mil”, informa um senhor que conhece bem o cemitério e que também pediu sigilo. “Ali era a quadra 11. Por que você acha que construíram um ossário no meio da quadra?”, acrescenta, sem querer dar mais corda à conversa.

“Onde hoje está cheio de árvore, antes era tudo túmulo dos indigentes. Chegava a ter 200 enterros por dia. Isso que falam, do enterro dos mortos políticos, para mim foi um pouco para lá de onde hoje é o velório”, revela outro antigo trabalhador.

Reurbanização

Os relatos reforçam a tese de que, se o crime não foi perfeito na execução, foi quase perfeito na ocultação, apostando em confundir futuros trabalhos de localização. Na década de 1970, quando o cemitério de Perus era mais empregado para destinar restos mortais de vítimas da ditadura, Vila Formosa caiu em desuso. Mas começou a “reurbanização” do local, com alargamento de ruas do cemitério da zona leste avançando sobre centenas de sepulturas. Árvores foram plantadas sobre outros túmulos, e a numeração das quadras foi trocada.

Para piorar o quadro, Vila Formosa conta com um número elevado de sepultamentos e não dispõe de jazigos definitivos. Atualmente, são 25 enterros por dia, seis ou sete vezes menos que a média da época da ditadura. Ainda assim, é um volume alto, especialmente de corpos classificados como indigentes, que ficam enterrados por três anos. Pessoas identificadas são mantidas por até seis.

Após esse prazo, os restos mortais são removidos para os ossários ou se promove um novo sepultamento, literalmente, por cima do anterior. É provável que isso tenha ocorrido repetidas vezes sobre restos mortais ocultados pela ditadura. Esse cenário torna mais complexa a localização, mas mantém a necessidade de se lidar com a questão.

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