Primeiro casamento entre mulheres na América do Sul está ameaçado na Argentina

Série de reportagens mostra, em Buenos Aires, a vida das senhoras de 67 anos que conseguiram aval da Justiça para se casar, mas agora enfrentam resistências

Norma e Raimona celebraram a união civil em 8 de abril, mas contestação judicial mostra que novos obstáculos devem aparecer (Foto: Arquivo pessoal/Facebook)

Buenos Aires – O telefone toca uma, duas, três vezes: insistentemente, interrompe a conversa. É seguido pelo celular, e logo os dois entram em esquema de revezamento. Norma não sabe por qual deles começar. É gente de toda parte ligando para dar ou para receber notícias. A informação de que foi apresentado um pedido de anulação do primeiro casamento entre duas mulheres na América do Sul corre rapidamente e vai parar em páginas de notícias e redes sociais.

Série: A várias vistas

Encerra-se ali um curto período de agitação iniciado pelo casamento promovido numa quinta-feira (8), de Norma Castillo e Ramona “Cachita” Arévalo. Começa, por outro lado, mais um momento de correria na vida dessas senhoras de 67 anos. A entrevista, a quadragésima ou quinquagésima da semana, precisa ser interrompida para que o casal possa entender o que está acontecendo. 

A esta altura, fim da tarde de uma sexta-feira (16) de temperaturas amenas do outono de Buenos Aires, tudo que Ramona e Cachita sabem é que foi apresentado o pedido de anulação por um grupo que se diz representante de católicos. Depois da bateria de telefonemas, as duas trocam as roupas simples que utilizam dentro de casa por algumas menos simples que usam fora dela e se colocam a caminho do centro da cidade.

No caminho entre o Parque Chas, tranquilo reduto portenho, e a avenida de Mayo, Norma fala com firmeza sobre política sul-americana, lamentando que Lula e Cristina Kirchner tenham de ceder em muitos pontos em nome da governabilidade, e mostra resignação quanto à pouca possibilidade de vitória de forças progressistas da sociedade, embora desenvolva, como sempre em sua vida, muitas atividades por militância.

Ela não tem dúvidas sobre as conexões entre regimes militares, neoliberalismo, machismo e o fato de só agora poder se casar oficialmente, 30 anos depois de ter iniciado a relação com Cachita. “Por que não se olham no espelho e tratam de cuidar de seus pedófilos?”, dispara. A crítica é referência à resistência imposta da Igreja Católica às recentes autorizações judiciais, concedidas caso a caso, para o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

O recurso apresentado neste momento indica que sua batalha provavelmente não será encerrada ao longo das décadas que lhe restam. Mas ela sabe que apesar de duradoura, a luta não será inútil.

Entre cigarros e cafés

O encontro no centro da cidade é com Karina Lamas, uma das advogadas que cuidam da causa. Karina, de cabelos negros e ondulados, encerra da maneira esperada uma semana difícil que incluiu viagens ao norte do país e um frio que lhe roubou a voz. Ocorre que o recurso era esperado já no começo da semana por conta de toda a exposição que teve o caso: o casamento foi capa dos principais jornais do país e destaque no noticiário de rádio e de TV.

Agora, com o recurso em uma sexta-feira à tarde, será necessário esperar todo o fim de semana para saber quais os argumentos apresentados pelo advogado – e que possivelmente já foram aceitos por um juiz. É mais uma das incertezas do momento. Enquanto espera o casal, Karina se senta em uma mesa de um típico bar portenho, entre avenida de Mayo e Chacabuco. As senhoras demoram, desceram duas quadras antes, por equívoco.

Agora, quando Norma tem de pedir informação na rua, como não escuta tão bem, pede um ouvido emprestado a Cachita, e assim volta a ter dois funcionando plenamente. Quando Cachita, que tem um problema nos pés, demora para atravessar a rua, Norma toma-lhe pelas mãos para acelerar a chegada ao outro lado. Nas palavras, há uma certa complementaridade, sinal de cumplicidade. As palavras de uma somam-se às da outra para dar um único sentido, que só mesmo muitos anos de convívio poderiam brindar.

Norma cria sua própria Teoria da Relatividade para explicar o amor, dizendo que 30 anos passaram em um piscar de olhos. “Que se sente quando se está um minuto beijando o amor de sua vida, a pessoa que você quer bem neste mundo como ninguém?”, propõe, com olhar nos olhos de Cachita. “E o que se sente quando fica um minuto com o dedo no fogo? A diferença é que um minuto passa voando e o outro parece uma eternidade”, ensina.

Hoje, Norma e Cachita têm uma união que, na opinião da advogada Karina, é inatacável. “Vivem há 30 anos juntas sem qualquer separação. Uma relação totalmente monogâmica, estável, que não deixa brechas para que os conservadores possam usar seus argumentos de que homossexualidade é igual a promiscuidade”, resume.

Durante a conversa, que dura três cafés e uns dez cigarros, discute-se a estratégia sobre o caso. A única certeza é que se entrará com o recurso tão logo se conheçam os argumentos apresentados no pedido de anulação. Outra questão é como tratar o assunto com a imprensa, que tenta a todo custo uma declaração das senhoras para os diários de sábado. Define-se que as duas devem apenas dizer que não conhecem o teor do pedido e que certamente irão recorrer.

“Estão o tempo todo tentando nos atingir com bravatas, com argumentos insustentáveis”, lamenta Norma. Em geral, é ela que faz as defesas mais enfáticas de suas posições. Fala e gesticula bastante. Cachita intercede por menos vezes, observa mais a cena, mas aos poucos se solta e coloca-se a defender com contundência. As duas, com uma altura que não passa muito de um metro e meio, usam óculos e têm os dentes cansados pela idade, gostam de contar histórias e soltar belas gargalhadas.

Quando Karina, Norma ou Cachita criticam a Igreja Católica, as outras duas somam-se aos argumentos, aproveitando para tirar uma lasquinha com piadas sobre padres, bispos e freiras. “Eles, antigamente, faziam escolas só de mulheres ou só de homens. Se eles juntaram, por que agora querem separar?”, ironiza Cachita. Norma junta-se novamente à cumplicidade que resulta na complementaridade. “É um mundo ao contrário. Para fazer guerra, todos os esforços. Para fazer amor, todos os obstáculos”, lamenta.

A várias vistas
A série A várias vistas narra o primeiro casamento entre mulheres da história da América do Sul. Norma Castillo e Ramona Arévalo, ambas de 67 anos, casaram-se em abril deste ano, em Buenos Aires, depois de 30 anos de convivência. A união foi autorizada por uma das decisões judiciais favoráveis concedidas nos últimos meses. Mas nem tudo são flores nessa história, e ainda deve haver mais resistência à oficialização do casamento.

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