Representante da OEA no Haiti critica imprensa por ênfase na insegurança

Ricardo Seitenfus defende presença dos EUA e afirma que reconstrução do país é maior desafio da história da América

Crianças haitianas jogam bola no estádio de futebol que serve de abrigo às famílias que perderam suas casas no terremoto. Representante da OEA aponta “um ensinamento para o mundo de solidariedade e civilidade” (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

A rotina de Ricardo Seitenfus está conturbada. O terremoto ocorrido no dia 12 de janeiro no Haiti forçou a interrupção das férias do representante especial do secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ele, aliás, só se salvou do terremoto porque havia regressado ao Brasil para as festas de fim de ano – o prédio em que morava foi abaixo e os moradores morreram.

O chamado urgente o levou de volta ao país, onde inicia seu segundo ano de mandato na missão pela OEA. De lá, ele retornou ao Brasil na última semana para mais uma maratona de reuniões que visam a coordenação dos esforços internacionais em prol do país devastado pelo fenômeno que deixou cem mil mortos e um milhão de desabrigados.

Nesse cenário, Seitenfus defende uma revisão da Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti (Minustah), tirando-lhe o caráter militar e ampliando atribuições civis. Ele critica os países e as organizações que veem, na presença dos Estados Unidos no Haiti, uma invasão militar. O representante da OEA entende que a união dos países da América é o passo fundamental para garantir a reconstrução do Haiti, tida por ele como o maior desafio da história do continente.

Direto de Montevidéu, mais uma das etapas do trabalho de coordenação internacional, Seitenfus conversou com a Rede Brasil Atual sobre os esforços necessários para a reconstrução. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Ruínas e limpeza

Temos no Haiti um desafio que guarda pouco a ver com os problemas anteriores. Agora, é uma reconstrução física que ninguém tem essa experiência. Nem mesmo o Haiti esteve tão debilitado quanto está hoje.

Depois da fase de emergência, temos praticamente um milhão de desabrigados, ruíram 250 mil casas, 30 estabelecimentos comerciais. Temos milhares de amputados. Há 60 milhões de metros cúbicos de escombros a serem retirados, e isso já começou na semana passada. Agora é a parte de limpeza e depois vem a reconstrução.

E aí os métodos são desconhecidos. O Plano Marshall, que recuperou a Europa, foi em uma Europa do pós-guerra que tinha Estados, tinha instituições, governo. No caso do Haiti, não temos isso. É uma situação muito complicada. O terremoto atingiu a zona mais densamente povoada do Haiti. É a maior hecatombe das Américas e nossa sugestão é que haja uma união do continente neste sentido. Terminou o tempo de políticas nacionais, é necessário haver coordenação e esforços em que todos estejamos juntos. E estamos correndo contra o tempo porque em dois ou três meses começa a temporada de furacões e chuvas. É urgente, urgentíssimo fazer a reconstrução.

Reconstrução de instituições

São desafios para a comunidade das Américas. Os esforços que foram feitos nos primeiros dias eram absolutamente deficientes. Mas o civismo e o espírito de solidariedade dos haitianos fizeram com que tudo ficasse na normalidade.

Agora é preciso reconstruir as instituições haitianas. Seria preciso fazer reformas constitucionais. Haveria eleições parlamentares, que foram adiadas, mas faremos todos os esforços para manter as eleições presidenciais em novembro.

É fundamental que se reforce o Estado haitiano, que se dialogue com o governo. Tudo que for para enfraquecer ainda mais a capacidade administrativa e política do governo haitiano não será bem acolhido. É necessário que se entenda que, enquanto não tivermos um Estado capaz de atender às demandas haitianas, não resolveremos o problema.

Críticas aos Estados Unidos

Toda essa crítica é uma manobra diversionista que tira o foco do que é a essência, que é prestar socorro muito rapidamente às vítimas. Os Estados Unidos têm uma tradição de promover assistência humanitária de forma segura e é o que sabem fazer. Fizeram de forma extremamente profissional.

A população haitiana acolheu muito bem a capacidade dos Estados Unidos frente à catástrofe. Os soldados agiram de forma extremamente correta, não dispararam nenhum tiro, fizeram a distribuição de alimentos em estreita colaboração com os outros militares. Os Estados Unidos não serão o que foram no passado, algozes do Haiti. Não estão lá para isso.

Insegurança é tema menor

Enfatizar a insegurança é prestar um desserviço à verdade. O povo haitiano tem sido extremamente civilizado. Nas praças, há organizações com lideranças; são centenas e centenas de pessoas vivendo nas ruas. É um cenário de organização, de solidariedade e de forte espírito cívico dos haitianos. É uma atitude educada e espiritual em relação ao que aconteceu.

Ninguém se conforma, mas há um choque social e que corresponde a uma solidariedade social muito grande. Há uma tentativa de retomada da vida. A sociedade haitiana não se deixou abater e é um ensinamento para o mundo de solidariedade e civilidade. Isso, a imprensa internacional não ressaltou. Sem Estado, sem presença militar, uma organização extraordinária.

Economia e Estado

É impossível ter uma cifra de quanto isso vai custar e quanto vai demorar. Minha impressão é de que o Haiti perdeu uma geração. E voltou a um passado que ele não conhece. Jamais esteve de forma tão debilitada e tão dependente do exterior.
Temos de pensar em mudar o mandato da Minustah, que não deve funcionar como uma missão de estabilização, já que não é possível estabilizar o país nessa situação. Deve ser um mandato em que a parte militar seja um fragmento, e que a parte civil, de reconstrução, seja a essência, exatamente o inverso do que era antes do terremoto.
É o maior desafio que as Américas enfrentaram em sua história e espero que as mulheres e os homens estejam à altura dele.