PEC do Trabalho Escravo levanta discussão sobre o significado da propriedade rural no Brasil

Ivan Valente (PSOL-SP) vê negociação para esvaziar significado da proposta; ruralistas argumentam necessidade de garantir propriedade como bem para os herdeiros

PEC do Trabalho Escravo, ao tratar de propriedades rurais, altera ânimos de deputados ruralistas e impõe novo desafio ao governo (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr)

São Paulo — Após o segundo adiamento da votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438, a PEC do Trabalho Escravo, ainda é incerto o texto que será votado. Em mais uma investida dos representantes do agronegócio, a votação foi postergada pelo temor de que acabasse derrotada. Os ruralistas defendem que a subjetividade da escravidão contemporânea, que fundamenta a aplicação da PEC, pode lhes causar danos – às suas propriedades, não à  vida. Para o deputado Bohn Gass (PT-RS), relacionar a importância da terra, sobrepondo-a à da existência humana, é uma “volúpia latifundiária. Um absurdo”. Gass diz respeito ao pronunciamento do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), que afirmou que sua terra vale mais que a vida humana.

Na mesma direção de Marquezelli, o deputado Valdir Colatto (PMDB-SC) defende que, caso haja flagrante de trabalho escravo na propriedade, o dono deva ser responsabilizado apenas criminalmente, pois “a família, como herdeira, não tem obrigação de abrir mão do patrimônio, que é a sua propriedade”. Para ele, o único intuito de se expropriar a terra é “livrar o governo da demanda da reforma agrária”, ou seja, Colatto considera que as desapropriações vão suprir o que deveria ser de responsabilidade do governo, o assentamento de famílias sem-terra.

O embate se inicia, ou melhor, se readequa. A PEC, apresentada em 2001 no Senado, trata da expropriação de terra na qual for encontrada trabalho análogo ao de escravo, direcionando a área à reforma agrária. Na tarde de ontem (9), na tentativa de impôr condições e, mais uma vez, impedir a aprovação, parlamentares ruralistas propuseram um acordo que contém uma lei complementar que conceitua trabalho escravo e desconsidera a expropriação da terra. Esta proposta seria votada em conjunto à PEC. Contrariando o que havia sido acordado, o presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), viu-se forçado pelo PMDB a adiar para o próximo dia 22 a votação.

Para Ivan Valente (PSOL-SP),  a questão do adiamento representa “negociação espúrea em marcha”. Pois, de acordo o deputado, a “submissão governista” e a força dos ruralistas levaram a esse adiamento para poder mudar a conceituação do trabalho escravo. “A PEC poderia ser votada ontem, mesmo que houvesse negociação, mas o setor ruralista está numa linha de que tudo que trata de propriedade privada eles não querem nem mexer”.

Luiz Carlos Heinze (PP-RS) considera que a PEC, da maneira que está sendo discutida, tem mais interesse no flagrante para uma consequente desapropriação do que nas condições do trabalhador propriamente ditas. Heinze afirma que a lei complementar, além de não descaracterizar a PEC, garantirá uma maior segurança aos produtores por não se pautar apenas nas considerações no ato da autuação judicial. “Eu não estou a fim de proteger o explorador. Mas também não quero deixar essa liberdade aos fiscais. Por isso estamos trabalhando neste novo texto.”

As defesas foram feitas, mas ainda há incertezas quanto ao futuro da PEC. De um lado, a tentativa de garantir a aprovação da proposta e, simultaneamente, a de uma lei complementar definindo conceito e, de outro, as possibilidades de mexer em um texto que já se arrasta por tanto tempo. Segundo o blogue do jornalista Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil, os deputados ainda não sabem, certamente, se é possível regulamentar uma emenda que não entrou na Constituição. Outros, porém, consideram que é desnecessário incluir uma lei (regulamentar ou complementar) que trate da PEC no texto da própria emenda. “Isso serviria apenas para alongar o pingue-pongue entre as duas casas”, concluiu Sakamoto, em seu texto.

Simbolismo

A aprovação da PEC do Trabalho Escravo, para especialistas, é uma vitória simbólica para garantir um avanço no combate ao trabalho escravo contemporâneo – mais que uma caçada em busca de novas propriedades para reforma agrária. O ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, entende que o embate que se produziu ao redor da PEC do Trabalho Escravo não veio em bom momento, por outros temas demandarem atenção dos congressistas e do governo, em especial a questão do Código Florestal, sensível aos representantes do agronegócio. “Para derrotar essa bancada ruralista, que acaba de mostrar os dentes para a Dilma, é preciso uma ação mais articulada. O combate ao trabalho escravo já tem uma base legal claríssima. A PEC funciona simplesmente como um último cerco”, definiu.

Já para Leonardo Sakamoto, só no campo simbólico é que se pode compreender a importância do trâmite da proposta. “Pois, na prática, a aplicação da lei encontraria várias dificuldades nos tribunais, sendo menos ampla do que desejam as entidades que atuam no combate ao trabalho escravo. É uma batalha entre a civilização e a barbárie”, lamentou.