Terceirização e eletricidade: combinação fatal

Terceirizados do setor elétrico têm piores condições de trabalho que os contratados diretamente e, quando sofrem acidente, enfrentam a falta de direitos

Belo Horizonte – Embora assustadoras, as estatísticas de acidentes de trabalho no país estão longe de expor o cenário vivido pelas famílias dos trabalhadores mortos e mutilados. Os números apontam para uma realidade que pouco sensibiliza os responsáveis por tomar medidas para garantir uma política eficiente de saúde e de segurança. 

Enquanto nada é feito para mudar o quadro de tantas tragédias, as empresas tocam o barco, obtendo lucros cada vez maiores. Já as vítimas, famílias que tiveram um ente querido morto de forma trágica, ou os acidentados que sobreviveram e seus parentes, vivem um dia de cada vez, tentando superar o trauma. 

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Em 2010, últimos dados divulgados pelo Ministério da Previdência Social, ocorreram 791.496 acidentes de trabalho no Brasil, com 2.712 mortes. As estatísticas referem-se apenas aos empregados que possuem carteira assinada. A informalidade engloba cerca de 20 milhões de pessoas. É a construção civil que apresenta a maior porcentagem de acidentes (36%). Porém, é no setor elétrico que a taxa de mortalidade dos acidentes é mais elevada, tendo em vista que a energia, quando não mata, deixa milhares de trabalhadores com sequelas irreversíveis, geralmente sem braços e/ou sem pernas.  

Conforme estudo do Dieese, realizado em 2008, são 32,9 mortes por grupo de 100 mil eletricitários. Segundo o documento, os terceirizados são a maioria das vítimas fatais e mutiladas. A taxa de mortalidade entre eles é 3,21 vezes superior do que entre os contratados pelas empresas. E o índice de acidentados dos terceirizados é oito vezes maior que o dos contratados.

Na Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), a maior e mais rentável estatal mineira, a realidade de mortes e mutilações de trabalhadores a serviço da empresa confirma o estudo do Dieese. Segundo o Sindicato dos Eletricitários (Sindieletro-MG), nos últimos 12 anos, a média é de uma morte a cada 45 dias em consequência de acidente de trabalho. De 1999 até março de 2012 foram 107 óbitos, a maioria de trabalhadores de empreiteiras. Em 2011 ocorreram oito acidentes fatais, todos com terceirizados da Cemig. Este ano, até março, já foram duas. O coordenador geral do Sindieletro, Jairo Nogueira Filho, lamenta que nada tenha sido feito para mudar o quadro de acidentes na empresa. “Não existe rigor em relação às mortes dos terceirizados, as empreiteiras não são fiscalizadas de forma eficiente e nem cobradas para que protejam seus trabalhadores”, disse.

O sindicato realiza há mais de uma década uma campanha pela preservação da vida dos trabalhadores. A entidade cobra que a Cemig defina uma política de saúde e segurança com a representação da categoria e entende que, para preservar a vida dos trabalhadores, é necessário começar com a negociação pelo fim da terceirização. A entidade cobra a contratação de pessoal próprio, por meio de concurso público, principalmente eletricistas, para substituir os terceirizados. A Cemig conta hoje com cerca de nove mil eletricitários, mas opera com mais 15 mil terceirizados. 

O economista do Dieese em Minas Gerais e coordenador do estudo, Fernando Duarte, disse que as mortes de terceirizados são em maior número porque eles atuam em condições piores em relação aos trabalhadores próprios. Essas condições incluem falta de treinamento para as atividades de alto risco, ausência, em vários casos, de equipamentos de proteção, e sobrecarga de trabalho. Além disso, os trabalhadores recebem baixos salários, possuem benefícios menores em relação aos colegas do quadro próprio e, geralmente, não têm representação sindical. 

Abandono

Milton Marcelino Ribeiro e Nilton Alves Maia são dois exemplos de trabalhadores que ficaram mutilados em conseqüência de acidentes gravíssimos enquanto trabalhavam para a Cemig. Eles passaram a ser parte das estatísticas dos acidentes de trabalho gravíssimos no setor elétrico, mas a realidade que tiveram de enfrentar mostrou uma via crucis de sofrimento físico e mental pela qual ninguém merece passar. 

Milton Marcelino sofreu acidente em 1990, aos 23 anos, vitima de choque elétrico. Perdeu o braço esquerdo e as duas pernas. Já Nilton Alves se acidentou em 2006, com 28 anos, também por choque elétrico e teve de amputar as duas pernas. O braço esquerdo ficou imobilizado. Em comum, além da perda de membros e do pouco treinamento para atuar em rede elétrica, eles sofreram depressão após o acidente e o drama de passarem por um longo trajeto para conseguir responsabilizar a Cemig e a empreiteira pela falta de segurança.

O calvário de Milton, que mora em Belo Horizonte, durou mais de 18 anos, tempo que a Justiça demorou para condenar a Cemig a lhe pagar uma indenização. Mesmo assim, ele teve de voltar a acionar o Judiciário para garantir a pensão de R$ 800 devida pela empresa, mas em atraso por meses. Enquanto aguardou a sentença, Milton sobreviveu apenas com um salário mínimo de aposentadoria, morou de aluguel, atrasou as contas, casou-se, teve um filho, viu faltar comida em casa, mas encontrou solidariedade dos companheiros de trabalho. A primeira cadeira de rodas foi obtida graças a uma “vaquinha” dos amigos. “Eu acho que a Cemig tinha de ter, no mínimo, respeito pelas pessoas. Comigo e com outros acidentados, a empresa não teve e não tem nenhuma sensibilidade e compaixão, só pensa no lucro”, disse.

 Já Nilton Alves ainda luta na Justiça para receber seus direitos. Ele já foi submetido a 11 cirurgias e se aposentou por invalidez, recebendo pouco mais de um salário mínimo. Nilton mora em Passos, no Sul de Minas, com a esposa e uma filha adolescente. Após o acidente, entrou em depressão. Diz que pensou muito em suicídio ao se sentir um inválido nos primeiros meses de recuperação e ao enfrentar dificuldades financeiras para pagar as contas e até para comprar alimentos. Mas o apoio da família e a solidariedade dos colegas de trabalho foram fundamentais para ele querer voltar a viver. Os colegas de empreiteira e da Cemig fizeram uma campanha em uma emissora de TV de Passos para arrecadar alimentos e dinheiro para a família de Nilton.

“Superei a tristeza e hoje sei quem é verdadeiramente amigo. Dou mais valor à minha esposa e à minha filha, que nunca me abandonaram. Infelizmente, só percebi que fui extremamente explorado depois que me acidentei. Trabalhei dias, sem descanso, por 12 e até 14 horas, mas quando sofri o acidente, passei a não valer mais nada para os patrões”, disse.