Justiça condena produtoras de agrotóxicos a pagar plano de saúde vitalício a ex-trabalhadores

Shell, Basf e Cyanamid têm 30 dias para atender à exigência definida pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) em Campinas. Empresas estão envolvidas em acidente em Paulínia (SP), mas devem recorrer

São Paulo – Por decisão unânime dos nove desembargadores, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15ª Região, em Campinas, determinou que as empresas Shell Brasil, Basf S.A. e Cyanamid Química Brasil estão obrigadas a pagar o tratamento médico integral de todos os trabalhadores e seus familiares, sem qualquer tipo de carência ou restrição. O julgamento ocorreu na tarde de de quarta-feira (7). A decisão, que beneficia ex-trabalhadores e seus familiares, estipula prazo de 30 dias para que as empresas providenciem instalações físicas para o atendimento dos ex-trabalhadores em Campinas (SP) e em Paulínia (SP).

Os beneficiados terão atendimento sem limite de consultas, com livre escolha de médicos em qualquer especialidade. Tratamentos, exames, cirurgias, internações e demais procedimentos deverão ser acompanhados de solicitação de médicos, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos ou outro profissional da área de saúde. Representantes da Associação dos Trabalhadores Expostos à Contaminação Química (Atesq), do Ministério Público do Trabalho e do Sindicato Químicos Unificados têm um mês para formar um comitê responsável pela habilitação das pessoas que terão direito à cobertura.

Esta é uma segunda vitória dos ex-trabalhadores. Em dezembro de 2008, a juíza Maria Inês Corrêa de Cerqueira César Targa, da 2ª Vara do Trabalho de Paulínia, determinou que as duas multinacionais contratassem um plano de saúde vitalício para os ex-funcionários expostos a riscos de contaminação na unidade de fabricação de agrotóxicos, no bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia. As empresas recorreram da decisão e seus advogados entraram com o mandado julgado na quarta.
 
As empresas condenadas avisaram que vão recorrer. Segundo comunicado da Basf, “a posição da empresa quanto à ação civil pública e o julgamento ocorrido ontem à tarde (quarta, 7) é que ambos estão embasados na contaminação ambiental, cuja responsabilidade é da Shell, conforme já reconhecido pelas autoridades competentes”. A empresa alega nunca ter causado danos ao meio ambiente e aos ex-trabalhadores.

Também por meio de sua assessoria de imprensa, a Shell afirmou que “a existência de contaminação ambiental não implica necessariamente em exposição à saúde de pessoas, o que vem sendo comprovado por todos os estudos, análises e perícias realizadas ao longo dos últimos 6 anos na região. Dessa forma, não é possível afirmar que as alegadas queixas de saúde de ex-funcionários ou quaisquer outros trabalhadores resultaram do fato de essas pessoas terem trabalhado nas antigas instalações da Shell em Paulínia. A  empresa  respeita a decisão da Justiça, irá cumpri-la, porém continuará promovendo a defesa dos seus direitos no Judiciário.”

Mesmo com o recurso, que vai adiar o benefício do plano de saúde, Antonio de Marco Rasteiro, ex-trabalhador da Shell/Basf e coordenador da Associação dos Trabalhadores Expostos à Contaminação Química, vê uma grande vitória na decisão e está confiante. “As multinacionais contrataram grandes advogados, entre eles um ex-ministro, um ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho e uma ex-juiza agora aposentada. Mesmo assim perderam de novo”, diz.

Segundo ele, é vergonhosa a pressão amigável ou por intimidação por poder econômico e/ou político – lobby – que a Shell e a Basf fazem sobre os tribunais e sobre diversos órgãos da administração pública federal, estadual e municipal, a quem caberia justamente fiscalizar as ações das empresas, obrigá-las a cumprir a lei, respeitar o meio ambiente e a vida. E, em caso de isso não ocorrer, condená-las exemplarmente. “É um verdadeiro rolo compressor sórdido, um vale-tudo revoltante e assustador”, completa.

Para entender o que ele quer dizer, em 26 de dezembro de 2002, a fábrica foi interditada pela Delegacia Regional do Trabalho (DRT) por apresentar riscos aos trabalhadores e ao meio ambiente. Em agosto do ano seguinte, a juíza federal Maria Cristina Barongeno Cukierkorn anulou o termo de interdição. Só em junho de 2006 a Justiça Federal declarou plenamente válido o termo de interdição, não cabendo mais recursos. Há três anos, a juíza Barongeno apareceu numa reportagem como suspeita de dar decisões favoráveis a clientes de suposta quadrilha de venda de sentenças.

A luta dos ex-trabalhadores contra as empresas que contaminaram a saúde e o meio ambiente no bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia, foi reconhecida internacionalmente. Em novembro passado, foram homenageados pela Apha (sigla em inglês para Seção de Saúde do Trabalhador da Associação Americana de Saúde Pública), que elege entidades ou trabalhadores, especialistas, pesquisadores, cientistas e acadêmicos que, em todo o mundo, se destacam pela defesa da saúde do trabalhador. A homenagem foi feita na Filadélfia, nos Estados Unidos.

Com apoio da Fundacentro – a única entidade governamental brasileira que atua em pesquisa científica e tecnológica relacionada à segurança e saúde dos trabalhadores – e de duas escolas técnicas que ministram cursos de segurança no trabalho, a Atesq realizará no próximo dia 28 mais um evento em memória dos 53 ex-trabalhadores mortos em decorrência da contaminação.

Para entender o caso

No final da década de 1970, a Shell instalou uma fábrica de agrotóxicos vizinha ao bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia. Em 1992, vendeu a unidade para a multinacional Cyanamid. Houve na época uma auditoria ambiental, que apurou a existência de contaminação do solo e dos lençóis freáticos.

A Shell foi obrigada a denunciar a situação à Curadoria do Meio Ambiente de Paulínia, o que resultou num Termo de Ajustamento de Conduta. No documento, a empresa reconhece a contaminação do solo e das águas subterrâneas por produtos denominados aldrin, endrin e dieldrin, compostos por substâncias altamente cancerígenas. E foram encontradas ainda contaminações por cromo, vanádio, zinco e óleo mineral em quantidades significativas.

Após resultados toxicológicos, a agência ambiental entendeu que a água das proximidades da indústria não poderia mais ser utilizada. Isso levou a Shell a adquirir todas as plantações de legumes e verduras das chácaras do entorno e a passar a fornecer água potável para as populações vizinhas, que utilizavam poços artesianos contaminados.

Mesmo nas áreas residenciais no entorno da empresa foram verificadas concentrações de metais pesados e pesticidas clorados (DDT e drins) no solo e em amostras de água subterrâneas. Constatou-se que os “drins” são tóxicos ao fígado e causam problemas no sistema nervoso central.

Em 2000, a Cyanamid foi adquirida pela Basf, que assumiu integralmente as atividades no complexo industrial de Paulínia e manteve a exposição dos trabalhadores aos riscos de contaminação até 2002. Naquele ano, os auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego interditaram o local. Apesar do recurso impetrado pela Basf, a interdição foi confirmada em decisão do Tribunal Regional do Trabalho a 2ª Região, em São Paulo.

O Ministério da Saúde concluiu, em 2005, a avaliação das informações sobre a exposição aos trabalhadores das empresas Shell, Cyanamid e Basf a compostos químicos em Paulínia. O relatório final indicou que, além dos moradores das chácaras nas imediações, todos os trabalhadores foram diretamente expostos – na produção, no armazenamento e no transporte – a vários agentes que afetam a função sexual, a ação imunológica e neurológica e induzem a tumores malignos nas mamas, testículos e próstata. A médica June Maria Passos Rezende, que estudou documentos de 62 ex-trabalhadores da Shell atendidos no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Campinas, concluiu que as pessoas do grupo analisado estavam 166 vezes mais expostas a riscos de câncer do que o restante da população masculina da cidade.