Fome, descaso e tiros agravam esquema de escravidão

Organizada a partir de denúncia de trabalhador que conseguiu escapar de uma carvoaria, operação liberta 69 pessoas de trabalho escravo no norte de Goiás

São Paulo – A resposta que Paulo* recebeu quando tomou coragem para cobrar o salário atrasado foi uma saraivada de tiros. As balas não o atingiram e ele conseguiu fugir da carvoaria em que trabalhava. Saiu em busca de providências para dar um basta ao cotidiano de sofrimento que compartilhava com outros colegas migrantes de Minas Gerais que enfrentavam as mesmas condições desumanas de trabalho e de vida na região Norte de Goiás.

Após escapar do atentado, ele seguiu a pé da fazenda até o posto da Polícia Civil de Santa Terezinha de Goiás (GO). Deparou-se, porém, com a recusa dos policiais em registrar o episódio na forma de boletim de ocorrência. “Eles me disseram que só registrariam a queixa se eu tivesse com ele [autor dos disparos] lá. Como eu poderia estar com ele lá? Ele é poderoso na cidade. Dá medo”, relatou Paulo* à Repórter Brasil

Mesmo assim, ele não desistiu. Determinado, dormiu na rodoviária e teve até que vender uma das poucas peças de roupa que ainda tinha para juntar os recursos necessários para chagar até uma unidade do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e relatar o ocorrido. Cumprida a missão, Paulo* foi brindado com o abrigo oferecido por uma entidade civil.

A operação organizada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás (SRTE/GO) a partir das indicações dele resultou na libertação de 69 pessoas de condições análogas à escravidão, incluindo cinco adolescentes entre 15 e 17 anos, que trabalhavam em 11 carvoarias.

“Trata-se de um dos maiores esquemas de exploração de trabalhadores já vistos em Goiás”, declarou Roberto Mendes, que coordenou a fiscalização. Os flagrantes ocorreram em julho último e foram acompanhados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Polícia Federal (PF).

Os empregados desmatavam a mata nativa do Cerrado, produziam carvão vegetal nos fornos e continuava até a entrega do produto em Minas Gerais. “Várias siderúrgicas compravam o carvão, mas não havia notas fiscais no local para apurarmos a cadeia produtiva”, adicionou Roberto.

Descartados

A exploração criminosa de trabalhadores envolvia um grupo familiar que vinha atuando há mais de seis anos na produção e comercialização de carvão vegetal na região, sempre de forma irregular. São ao menos sete os envolvidos, todos de uma mesma família: Francisco Braz Cavalcante, conhecido como “Paraíba”; Francisco Cezar Cavalcante (pai de “Paraíba”); Marli Pereira Cavalcante (esposa do Paraíba); Pedro Braz Cavalcante (irmão de “Paraíba”); Cícero Aguiar Pereira Cavalcante (filho de “Paraíba”), além de Ricardo e Eduardo Braz Cavalcante (ambos sobrinhos do mesmo “Paraíba”).

O acusado da tentativa de homicídio é Walter Lopes Cançado, que tem os apelidos “Nenzin” e “Nenzico”, que também foi considerado como co-autor do crime de trabalho escravo pela equipe de fiscalização.

As propriedades fiscalizadas foram as seguintes: Fazendas Santa Cruz e Óregon, em Santa Terezinha de Goiás (GO); Fazendas Areião, Alegre Córrego Jatobá, Crixazinho e Jatobá, em Crixás (GO); Fazenda Mutum ou São Francisco, em Pilar de Goiás (GO); Fazenda Many, povoado de Mandinópolis, em Guarinos (GO); Fazenda Xavier ou Sete Estrelas, em Uirapuru (GO); e Fazenda Tarumã, em Nova Crixás (GO). Os proprietários das áreas citadas também serão responsabilizados pela fiscalização trabalhista.

As vítimas foram aliciadas em Paracatu (MG) e Mirabela (MG) por “gatos”. O próprio “Nenzin” atuou como intermediário em alguns dos casos. “Eu estava em Minas [Gerais] procurando trabalho. Podia ser qualquer coisa – cana ou carvoaria. Aí o ´gato´ Nenzin me chamou e disse que o trabalho era bom, que eu ia ganhar até R$ 2 mil por mês. Fui, né?”, descreveu Paulo*. Ele relatou que vem atuando há cinco anos em carvoarias e alega que já está habituado a viajar por diferentes Estados do páis em busca de trabalho.

Os migrantes resgatados em Goiás deixaram suas comunidades sem que o empregador cumprisse a Instrução Normativa nº 76, do MTE, que prevê um requerimento junto à agência mais próxima do órgão para a emissão da Certidão Declaratória para Transporte de Trabalhador (CDTT). 

O registro em carteira do trabalhador deve ser feito ainda no local de origem. “O descumprimento dessas obrigações caracteriza, em tese, os delitos previstos no art. 207 do Código Penal: crimes de aliciamento e de recrutamento de mão de obra”, explicou o auditor fiscal Roberto. Por muitas vezes, completa o agente público, “os trabalhadores vinham sobre as carrocerias dos caminhões que transportavam carvão para aquele Estado”. 

No desenrolar das inspeções, foram encontrados oito trabalhadores que passavam fome em um hotel em Santa Terezinha de Goiás (GO). Os auditores fiscais pagaram a alimentação do grupo. “Nos dias seguintes, mais trabalhadores foram encontrados na mesma situação. Todos eles foram encaminhados para um hotel, onde receberam abrigo e alimentação por conta da União durante 13 dias”, contou o coordenador da fiscalização. 

Com a conclusão de determinados serviços, alguns eram abandonados pelos empregadores, sem nenhum dinheiro. “Descartados, eles se hospedavam em alguma pequena pousada à espera de um ´gato´ que pudesse pagar as dívidas pendentes e levá-los para outra carvoaria”, disse Roberto.

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