Ação de agente comunitário é chave do Saúde da Família

Elo entre médico e pacientes, profissionais têm papel de destaque no programa

Dona Darci recebe a visita da enfermeira Rose de Lima, que acompanha o controle do diabetes e da hipertensão (Foto: Danilo Ramos)

São Paulo – Carlos Roberto Souza conhece como poucos as ruas do centro de São Paulo e seus habitantes. Antes de ser Agente Comunitário de Saúde, profissão que exerce há um ano e meio, trabalhou em uma organização não-governamental que tratava da questão da população de rua.

Hoje, atua junto à mesma população, atendendo a um dos requisitos necessários para ser agente comunitário. Esta função, fundamental para o sucesso do Programa de Saúde da Família, precisa ser exercida por alguém que conhece a comunidade com a qual está trabalhando.

O agente precisa percorrer uma determinada área na qual acompanha seus pacientes e preenche um rigoroso formulário com dados sobre peso, pressão, hábitos e problemas. Cada uma das 30.931 equipes do PSF conta com seis agentes comunitários, um médico, um enfermeiro e dois auxiliares de enfermagem. O agente faz a interface entre os profissionais de saúde e os moradores, agendando visitas à casa dos pacientes ou às unidades de saúde.

A Unidade Básica de Saúde República, na qual Carlos trabalha, tem como peculiaridade a formação de equipes que lidam exclusivamente com a população de rua. São 24 agentes distribuídos em quatro grupos. Carlos, sozinho, tem hoje 220 moradores cadastrados. E conhece a maioria pelo nome ou, pelo menos, de vista.

O agente faz a interface entre os profissionais de saúde e os moradores, agendando visitas à casa dos pacientes ou às unidades de saúde.

Todos os dias, circula ao menos duas vezes por sua área para conversar com os pacientes. Atualiza, constantemente, a ficha de cada um. Conhecedor das dificuldades de sua profissão, sabe todas as “manhas” para não incorrer em erros que podem custar caro. Muitos moradores de rua, como proteção, guardam uma faca junto a seus pertences. Por isso, Carlos não faz qualquer contato quando eles estão dormindo ou acabaram de utilizar alguma droga.

Pela manhã, se está frio ou chovendo, os viciados em substâncias mais pesadas dormem para se recuperar de uma, duas ou três noites em claro. A Cracolândia está praticamente deserta neste dia, mas nem por isso deixa de dar uma ideia das agruras do trabalho do agente comunitário. Carlos procura, em vão, uma jovem grávida de quatro meses que, apesar dos pedidos, não deixou de usar drogas.

Ele encontra pelo caminho diversas “malocas”, que são os grupos de moradores de rua. Por solidariedade ou por segurança, formam-se verdadeiras famílias que contam, cada uma, com localização fixa e lógica própria de funcionamento. Há sempre um líder e todos os recursos amealhados ao longo do dia são compartilhados.

“Precisa chegar cumprimentando todo mundo, falando como se já conhecesse há anos, para estabelecer uma relação de confiança”, afirma. Perder o trânsito dentro de alguma das “malocas” significa ter de deixar o trabalho. Logo na primeira conversa do dia, com um grupo de etilistas (alcoólatras), Carlos vai distribuindo os recados. Um precisa fazer exame. O outro, uma consulta, que é marcada para o dia seguinte – “Mas precisa estar sóbrio, hein? Passo aqui para te buscar”.

Um rapaz quer saber se tem HIV. Carlos pergunta se o pessoal tem usado as camisinhas trazidas pelos agentes. “Eu vou chupar papel com bala, amigo?” é a resposta que se escuta, e que resume bem a dificuldade deste trabalho que, ao que parece, foi feito apenas para apaixonados pela causa.

O agente não pode forçar os pacientes a nada. Tem, como obrigação, orientar e tentar ajudar de alguma maneira, mesmo que seja para reduzir os danos. Na época de inverno, por exemplo, proliferam-se os casos de tuberculose e os agentes têm tido certo êxito em convencer os moradores sobre a importância de realizar exames.

“À medida que (o agente) identifica necessidades, encaminha para o enfermeiro, o médico ou o dentista”, resume Maria Alice Pessanha de Carvalho, pesquisadora-adjunta da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz). “Funciona numa perspectiva de escala de risco. Vai identificar quais as famílias mais vulneráveis, quais as que precisam de atendimento mais próximo. E vai possibilitar o agendamento das consultas”, detalha.

O agente não pode forçar os pacientes a nada. Tem, como obrigação, orientar e tentar ajudar de alguma maneira, mesmo que seja para reduzir os danos. Na época de inverno, por exemplo, proliferam-se os casos de tuberculose e os agentes têm tido certo êxito em convencer os moradores sobre a importância de realizar exames. Tratamento é outra etapa. O índice de recuperação de doenças em geral entre essa população é relativamente baixo na comparação com o segmento residencial.

Nas casas do centro

Dentro dos apartamentos da região central, muitas doenças são decorrentes de hábitos de vida sedentários ou de alimentação inadequada. Solidão também é um problema que se manifesta sob a forma de enfermidades. Os agentes, sempre divididos em áreas, batem de porta em porta. Às vezes, demora meses para que alguém atenda ou a recepção não é nada amigável.

Dona Darci é exceção à regra. Tem problemas que são relativamente amenos e estão muito mais ligados a hábitos equivocados no passado que à falta de acompanhamento no presente. Recebe visitas frequentes da agente Zaine Tayre da Silveira, que hoje tem a companhia da enfermeira Rose de Lima. Darci reclama um pouco, mais por brincadeira que por convicção, mas faz o controle de hipertensão e de diabetes. A agente pede para marcar uma data para exames, a paciente concorda.

Na saída do prédio, as integrantes da equipe de Saúde da Família têm uma grata surpresa. Teresa, uma senhora de cabelos brancos e óculos largos, até há bem pouco tempo praticamente não andava e não tinha força para hábitos simples, como pentear os cabelos. O trabalho das agentes foi fundamental para identificar os problemas, pedir apoio da família e solucionar a questão. O passeio da paciente naquela tarde reveste-se de um caráter especial para quem a viu em um quadro bastante preocupante.

Mas, no trabalho de agente comunitário, passa-se da alegria à tristeza em questão de minutos. No prédio ao lado vivem um casal e três filhos. O pequeno apartamento tem um ar denso e uma umidade incômoda que mostram logo de cara a situação ruim. Duas das crianças têm anemia falciforme e demandam cuidados especiais para terem um desenvolvimento físico próximo ao tido como regular. Paralelamente ao atendimento clínico, a equipe de Saúde da Família tenta mudar as condições para evitar que o casal perca a guarda de uma das crianças devido às condições ruins de habitação.

“O agente consegue tanto levar à comunidade as informações de maneira mais rápida quanto identificar as necessidades de saúde, de agravos daquela casa, daquela rua, daquele morador de rua. Sem ele, o Programa de Saúde da Família não aconteceria”, resume Tatiana Alecrim, coordenadora da unidade da República.

Casos de sucesso

Para tornar menos árduo e mais estimulante o trabalho, as equipes se apoiam nos chamados “casos de sucesso”. “Às vezes o sucesso para a gente é conseguir que o paciente conclua o tratamento de tuberculose, consiga vir diariamente para tratar uma ferida”, resume Tatiana. “Não adianta a gente deixar o morador de rua inteirinho, tratado de todos os problemas de saúde, se depois não vai encontrar emprego, não vai ter aonde morar”, acrescenta Carlos.

Por isso, ampliar os casos de sucesso significa trabalhar em equipe. Assistentes sociais são acionados na tentativa de fazer contato com a família e de conseguir moradia e emprego. Um dos episódios mais especiais registrados na unidade do centro de São Paulo é o de Mila, uma travesti que durante meses resistiu à aproximação dos profissionais.

Por fim, em um momento de fragilidade, agente e médico conseguiram contato. Mila deixou de fazer programas, abandonou as drogas e, com ajuda do PSF, conseguiu moradia, fez curso profissionalizante e agora trabalha como assistente de cabeleireiro.

Periferia

O Morro da Fé é a área de atuação de Robson da Silva Pereira. Estão cadastradas 202 famílias em sua área de abrangência, na zona norte carioca, recebendo ao menos uma visita por mês. 

Antes do trabalho do programa muitas pessoas eram obrigadas a recorrer a hospitais para tratar problemas que podem ser resolvidos no cuidado básico, enfrentando longas filas, o que chegava a agravar uma doença que antes era simples.

As casas muito “coladas” fazem com que alergias, bronquite, asma e tuberculose sejam as ocorrências mais comuns no bairro. Robson faz mapas da região, distribui remédios prescritos pelos médicos e desenvolveu um sistema de fluoretação na bica d’água da comunidade para tentar reduzir problemas bucais. “O principal é dar atenção ao povo, acolher. Às vezes você perde uma pessoa que, se não tem consegue ser atendida, vai pra outro lugar e acaba agravando a situação”, afirma.

Ele não tem dúvidas sobre a importância do trabalho desenvolvido pelo Saúde da Família no Morro da Fé. Como em São Paulo, antes do trabalho do programa muitas pessoas eram obrigadas a recorrer a hospitais para tratar problemas que podem ser resolvidos no cuidado básico, enfrentando longas filas, o que chegava a agravar uma doença que antes era simples.

Quando uma nova turma de agentes comunitários vai se formar, Robson é chamado para dar palestras. “Você acaba se envolvendo, traz para casa. Quando chega em casa, explode. É ver uma pessoa que precisa de ajuda, perder um paciente. Mas gosto muito do meu trabalho”, constata.

 

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